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Batutas na berlinda

As denúncias de assédio moral que abalaram a carreira de Daniel Barenboim mostram como até as orquestras estão mudando

Por Sérgio Martins Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 5 abr 2019, 07h00 - Publicado em 5 abr 2019, 07h00

Em ensaio da Sinfônica de Chicago, Daniel Barenboim repreende um violinista que julga inferior aos outros instrumentistas. Sugere que o sujeito, já veterano, se aposente e curta seus últimos anos de vida longe da orquestra. “Maestro, vou morrer nesta cadeira”, retruca o músico, ofendido. “Sem problemas”, responde Barenboim. “A gente manda a cadeira para sua casa.” Histórias como essa enriquecem o anedotário da música erudita, mas são cada vez menos toleradas à luz do dia. Que o diga Barenboim. O argentino naturalizado israelense, de 76 anos e 200 gravações como solista e maestro, é remanescente de uma espécie indissociável das orquestras desde o fim do século XIX: o maestro tirano. Nos tempos implacáveis do movimento MeToo, no entanto, esse animal que berra e atormenta músicos está com a sobrevivência ameaçada.

Recentemente, a revista alemã VAN, especializada no universo erudito, publicou um perfil devastador do regente, centrado nas suas relações com a Ópera Estatal de Berlim, orquestra que ele comanda desde 1992. Os relatos de assédio moral são aterradores: vão de humilhações públicas aplicadas a músicos que não atendem aos seus padrões de exigência ao boicote a um diretor que foi de encontro à sua concepção artística. Barenboim, essa flor da regência, já empurrou uma violonista que tentou lhe entregar um buquê de flores e atirou uma partitura na cara de um violinista. Há o caso de um timpanista que teve de se tratar de depressão após padecer nas mãos do maestro.

O BOA-PRAÇA – Petrenko, o atual regente da Filarmônica de Berlim: tem até cerveja com a galera após os concertos (Chris Christodoulou/.)

Barenboim não destoa de uma tradição antiga. Por décadas, o pulso firme (ou a mão de ferro) foi considerado essencial para fazer com que um grupo de 120 instrumentistas supere suas vaidades na hora de executar peças complexas de Beethoven, Brahms e Mahler. A necessidade de disciplina e unidade redundou em regentes que tratam a orquestra na base do grito, do achincalhe e da humilhação. O italiano Arturo Toscanini (1867-1957) soltava guinchos de ódio e xingava os músicos de “porcos”. O húngaro Fritz Reiner (1888-1963) sentia tanto prazer em torturar os contratados da Sinfônica de Chicago — cujo atual maestro titular, aliás, é Barenboim — que hoje se especula se teria sido um psicopata. O austríaco Herbert von Karajan (1908-1989), que por duas vezes assinou filiação ao Partido Nazista alemão, foi quem melhor encarnou a figura do déspota. “Serei um ditador”, afirmou ele ao assumir a Filarmônica de Berlim, em 1955.

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Os métodos da tirania, claro, mudaram ao sabor das décadas. Karajan era um monstro, mas já não tinha a obsessão de Toscanini pela gritaria, embora pudesse intimidar seus comandados de maneiras sádicas. Ainda no tempo dele, porém, surgia um fator moderador: os músicos, mais unidos e sindicalizados, começaram a se rebelar contra o despotismo. Certa vez, quando Karajan disse que gostaria de jogar gasolina e tacar fogo nos músicos, um instrumentista retrucou: “Faça isso, maestro, e o senhor não terá um grupo sinfônico para reger”. Quando Karajan saiu da orquestra, em 1989, o conjunto berlinense mostrou estar farto de tiranos. Por meio do voto dos instrumentistas, ele foi substituído pelo italiano Claudio Abbado (1933-2014), sujeito tão afável que pedia para ser chamado de Claudio, em vez do formal “maestro”.

Lá pelo fim dos anos 70, a figura do regente autoritário ganhou notas mais sutis. A agressão gratuita caiu de moda, mas a pressão pela excelência virou o pretexto para emparedar os músicos. Barenboim se enquadra nesse figurino. Sua imagem pública era outra: a do maestro com preocupações sociais. Em 1999, ao lado do intelectual palestino Edward Said (1935-2003), formou a West-Eastern Divan Orchestra, que reúne músicos árabes e judeus, em aceno à solução pacífica para o conflito entre Israel e palestinos. O projeto pôs Barenboim na bolsa de apostas do Nobel da Paz.

O TIRANO INCENDIÁRIO – Karajan: o autoproclamado ditador austríaco ameaçava queimar vivos os músicos (Imagno/Getty Images)

O comportamento abusivo dos regentes sempre foi tolerado por causa de sua alta qualidade artística. Se Karajan ou Barenboim insultavam seus comandados, o excesso era compensado pelos resultados magníficos nas salas de concerto. Isso explica por que o irascível Barenboim nunca havia sido contestado. Poucos regentes arrancam de um grupo sinfônico interpretações como as que ele obtém. Mais: com suas conexões políticas, ele atrai verbas para manter sua orquestra entre as melhores do mundo. Tais conveniências, no entanto, já não blindam maestros autoritários. Em julho passado, Daniele Gatti, então à frente da Concertgebouw, de Amsterdã, foi acusado de assédio sexual por duas cantoras líricas. Tomou demissão sumária.

Nos dias de hoje, um bicho bem diferente das feras à moda antiga tem ganhado espaço no ecossistema das orquestras. São maestros como o russo Kirill Petrenko, que adicionou uma qualidade até há pouco impensável no perfil do regente ideal: a modéstia. Ele é pouco afeito a entrevistas e gosta de sair para beber com os músicos após os concertos. Essa postura menos divina, e mais humanizada, tem sido copiada por colegas como o canadense Yannick Nézet-­Séguin, o atual chefe da Metropolitan Opera, de Nova York: ele chega até a analisar junto com seu grupo erros na condução da partitura. Barenboim terá de se adaptar — mas é improvável que chegue a tanto.

Publicado em VEJA de 10 de abril de 2019, edição nº 2629

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