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As lições de um gênio: a mostra histórica de Leonardo da Vinci no Louvre

Quinhentos anos depois de sua morte, uma exposição prova que o mestre não só continua vivo: é uma inspiração de vida e antídoto contra as trevas

Por Marcelo Marthe, de Paris
Atualizado em 25 out 2019, 16h11 - Publicado em 25 out 2019, 07h00
VISIONÁRIO – O pintor, retratado por Francesco Melzi: mente sem limites (Veneranda Biblioteca Ambrosiana/.)

Por duas vezes o pintor italiano Leonardo da Vinci e o Museu do Louvre, em Paris, foram o centro de acontecimentos que mexeram com a imaginação popular. O primeiro desses eventos foi um crime real: em agosto de 1911, um italiano chamado Vincenzo Peruggia surrupiou a Mona Lisa, obra-prima de Da Vinci e o maior tesouro do Louvre, enquanto fingia fazer um serviço de manutenção no museu. Felizmente, o quadro foi recuperado — e o episódio só aumentaria sua fama. O segundo caso, bem mais recente, foi deflagrado pela ficção: O Código Da Vinci, best-seller de 2003 do americano Dan Brown convertido em filme de sucesso com Tom Hanks, usa a obra do pintor como combustível de um thriller conspiratório que traz um assassinato espetacular dentro do museu.

É bem possível que o livro de Dan Brown logo venha a ser esquecido, e que o roubo da Mona Lisa se torne uma nota de rodapé cada vez mais remota no anedotário da arte. Já a exposição Leonardo da Vinci 1452-1519, em cartaz desde o dia 24, não apenas põe o mestre renascentista e o Louvre de novo no centro das atenções planetárias. A mostra na capital francesa é resultado de um esforço multinacional que, definitivamente, entrará para a história: nunca nenhum museu havia realizado a façanha de reunir tantas obras-primas do maior e do mais famoso pintor da humanidade: 160, entre quadros, desenhos, esboços e páginas dos cadernos de Da Vinci.

Trata-se de um acontecimento estupendo — uma daquelas experiências que só se repetem a cada 500 anos mesmo. A exposição criou muita expectativa — e ansiedade — nos franceses. Há banners da mostra pela cidade toda e, embora a organização não divulgue números, sabe-se que a venda de ingressos antecipados on-­line explodiu (o bilhete custa o equivalente a 77 reais). O negócio é candidato a se tornar o maior festival de selfies do século — com o aval do Louvre, que só proíbe os infames paus de selfie. Ápice dos eventos que marcam os 500 anos da morte do artista, a exposição põe holofotes no criador da Mona Lisa num momento oportuníssimo: nestes tempos em que o mundo (incluindo o Brasil) flerta com as trevas e o obscurantismo, as lições extraídas da vida e da obra do gênio revelam-se um antídoto altamente inspirador. “Da Vinci era um homem das luzes. Seus desenhos e pinturas são uma grande celebração da vida, da natureza e da ciência. A arte de Da Vinci nos ajuda, enfim, a manter a fé no ser humano”, disse a VEJA o curador-chefe da mostra no Louvre, Vincent Delieuvin.

O Louvre precisou ter muita fé na generosidade humana, aliás, para transformar a exposição em realidade. A mostra começou a ser planejada há dez anos, porém até os 45 minutos do segundo tempo pairavam dúvidas sobre o empréstimo de obras. O museu francês chegou a anunciar a presença de uma pérola apenas recentemente adicionada à lista de pinturas de Da Vinci. O Salvator Mundi, que exibe um Cristo com os olhos marejados de um morto-vivo, saltou da obscuridade para a fama quando, em 2005, novas investigações científicas permitiram proclamar que se tratava de um legítimo Leonardo (embora alguns especialistas ainda rejeitem isso). Em 2017, ao ser vendido num leilão por 450 milhões de dólares, tornou-se a obra mais cara do mundo. Mas seu novo dono, provavelmente um príncipe árabe, esnobou o Louvre: a ausência do Salvator Mundi é a grande baixa da mostra. Só um artista do porte de Da Vinci seria capaz, ainda, de reavivar velhas rivalidades culturais, como se deu na hora de requisitar obras de museus da terra do pintor, a Itália. A coalizão populista que governou o país até meses atrás chegou a acusar a França de querer se servir de seus tesouros “como num supermercado”. Em um primeiro momento, a Justiça italiana vetou a ida do Homem Vitruviano, desenho que sintetiza a união entre arte e ciência. Mas a decisão foi revertida: o Homem Vitruviano viajou para o Louvre.

Agora, diante do acervo extraordinário que pode ser admirado junto pela primeira vez na história, os contratempos revelam-se miudezas irrelevantes. Da Vinci legou ao mundo não mais que dezoito quadros, dos quais dez estão na mostra francesa. Proprietário de cinco pinturas e 22 desenhos do artista — em razão de Leonardo ter morado na França, servindo ao então rei Francisco I —, o Louvre tem mais cacife que qualquer outro museu para realizar um evento assim. Trabalhos de Da Vinci raramente (ou nunca) saem das coleções que os abrigam. A mostra se inicia com os primeiros desenhos do pintor, quando ele ainda era pupilo do veterano Andrea del Verrocchio — e já exibia talento extraordinário para registrar nas obras as complexas nuances das vestimentas e mantos dos retratados. Ao longo das galerias, o que chama atenção é a presença, ao lado das obras, de versões em tamanho real de fotografias em infravermelho, que revelam os traços do artista e seus truques por baixo da tinta. A emoção é poder apreciar, lado a lado, criações que talvez nem o artista tenha visto juntas — como sua Santa Ana, obra-prima do Louvre, e a belíssima Madonna Benois, pertencente ao Hermitage, de São Petersburgo.

Ninguém que fica em contato com esse universo sai por aí pintando uma Mona Lisa, é claro, mas dá para absor­ver posturas úteis para a vida e o trabalho mirando-se em Da Vinci. Como lembra o americano Walter Isaacson — especialista que se debruçou sobre diversos gênios, de Einstein a Steve Jobs, e lançou, em 2017, a mais completa biografia do pintor —, o primeiro ensinamento que se extrai dele é a capacidade não só de superar adversidades, mas de usá-las como arma a seu favor. Da Vinci era filho de um notário — o equivalente de um dono de cartório atual. Poderia ter riqueza vivendo da burocracia, mas, por ser filho ilegítimo, não obteve direito ao título do pai. Ele não tinha estudo nem aprendeu as operações matemáticas básicas — ainda assim, produziu em seus quadros comentários humanistas tão profundos quanto os de grandes filósofos, além de tecer estudos revolucionários sobre um vasto campo de disciplinas, da física à botânica. Steve Jobs o via como herói: “Ele enxergava beleza tanto na arte quanto na engenharia. A habilidade de combinar as duas coisas o transformou num gênio”. O artista inovou até na medicina. No século XVI, propôs uma hipótese ousada sobre o funcionamento das válvulas cardíacas. Só em décadas recentes, com o avanço de técnicas como a ressonância magnética, a ciência esclareceu a questão. Da Vinci estava certo.

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Mas o que chama atenção sobre o mestre renascentista, e faz dele uma figura tão sedutora, é que o maior de todos os gênios se revelava falho e extremamente humano. Seu primeiro biógrafo, o pintor italiano Giorgio Vasari, nascido oito anos antes da morte de Da Vinci, atribuiu a ele uma prodigiosidade mágica: “Às vezes, de forma sobrenatural, uma única pessoa é brindada pelos céus com beleza, graça e talento”. O elogio é poético, porém impreciso. Na verdade, o legado de Da Vinci foi erigido por sua própria vontade e ambição. “Sua genialidade não vinha do fato de ele ser o recipiente divino — como Einstein ou Newton — de uma mente com tanto poder de processamento que nós, meros mortais, não somos capazes de compreender”, esclarece o biógrafo Isaacson. Da Vinci alcançou seus feitos, em suma, com base em atributos que qualquer um pode desenvolver em si: a observação incansável das coisas e o respeito supremo pelos fatos. Almejava, sempre, ir à raiz dos fenômenos. “Aquele que pode ir à nascente de um rio não vai a um jarro d’água”, aconselhava.

A mente do artista vagava livre entre os mais diferentes ramos do conhecimento — a ponto de não fazer distinção entre arte e ciência, ou entre a importância de um projeto de arquitetura e o estudo da língua de um pica-pau. Como notou o crítico de arte Kenneth Clark, ele foi “o homem mais avidamente curioso da história”. Esse turbilhão de ideias fica patente nas mais de 7 200 páginas dos célebres cadernos de Da Vinci. Para sorte da humanidade, ele não podia desperdiçar papel, então preencheu cada canto de seus escritos, como se atesta na mostra do Louvre. São desenhos e anotações obsessivos. A torrente mental de Da Vinci tinha um efeito negativo, sem dúvida: ele saltava de uma tarefa a outra sem concluir o que estava fazendo — e era um mestre também na arte da procrastinação. Como se vê em obras expostas no Louvre, como Retrato de um Músico ou o impactante São Jerônimo, isso resultou em obras inacabadas. Mas, não fossem as procrastinações e os saltos malucos de um interesse a outro, Da Vinci nunca teria sido o gênio que pintou a Mona Lisa, com sua decupagem precisa das emoções inscritas nos músculos faciais (leia o quadro). “E quanto aos especialistas que se descabelaram pelo fato de Leonardo ter desperdiçado grande parte de seu tempo em estudos sobre óptica e anatomia à procura de padrões no universo? A Mona Lisa responde a todos com um sorriso”, escreve Isaacson.

A propósito: o quadro mais famoso de Da Vinci — e do mundo — é o grande sujeito oculto da exposição em Paris. Por razões de segurança e logística, o Louvre preferiu não incluir a Mona Lisa, seu maior chamariz de público, entre as obras da mostra. Ela continua prisioneira das selfies selvagens dos turistas em sua redoma de vidro blindada, numa sala a cerca de 300 metros do restante do acervo da retrospectiva. Mas, espiritualmente, é uma presença incontornável. No final do percurso, o espectador pode fazer uma imersão em 3D dentro do quadro — a experiência termina com um voo numa asa-delta renascentista sobre a paisagem fantástica atrás da personagem. É vertiginoso, e é mais uma prova de quanto a mente de Da Vinci voava à frente da história.


SANTA ANA (1503-1519)
O Louvre aponta esta cena da infância de Jesus como a obra-prima definitiva de Da Vinci. Resignada, a avó de Cristo observa a Virgem tentando afastar o menino do cordeiro, símbolo da Paixão. Ao captar o estado mental das personagens, o artista atinge o sublime

(René Gabriel Ojéda/RMN-GP/.)

A VIRGEM DOS ROCHEDOS (1483-1486) 
É das pinturas mais enigmáticas do mestre. A paisagem desolada, com flores brotando das rochas, remete à concepção virginal de Maria. Junto dos bebês São João Baptista (à esq.) e Jesus, há um anjo que aponta para o santo. O detalhe indecoroso foi suprimido numa segunda versão da obra

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(Michel Urtado/RMN-GP/.)

SÃO JOÃO BAPTISTA (1513-1516) 
Já seria uma bela ousadia retratar o santo como um rapazote andrógino, que exibe o indicador em riste com certa conotação maliciosa. Pois Walter Isaacson, biógrafo do pintor, bota mais pimenta no quadro: o modelo seria Salai, jovem assistente e amante de Da Vinci

(Tony Querrec/RMN-GP/.)

SÃO JERÔNIMO (1482) 
Por razões que se desconhecem, Da Vinci deixou inacabado o quadro, pertencente aos Museus Vaticanos. Mas os contornos crus só realçam a genialidade da composição, na qual o santo e o leão parecem interagir. O corpo esquelético atesta o valor de seus estudos sobre anatomia

(A. Bracchetti/Governatorato SCV/Direzione Musei Vaticani/.)

LA BELLE FERRONIÈRE (1490-1497) 
A moça que mira o espectador com o canto dos olhos, desconfiada ou irritada, teria sido amante do benfeitor do artista, Ludovico Sforza, em sua temporada em Milão. Da Vinci usou de todo o seu conhecimento sobre a incidência da luz ao criar suas luminosas maçãs do rosto

(Michel Urtado/RMN-GP/.)

RETRATO DE UM MÚSICO (1483-1490) 
É o único retrato de um homem produzido pelo pintor — mas não se sabe ao certo a identidade do rapaz de cabelos loiros cacheadíssimos. Embora o rosto vivaz e muito humano seja puro Da Vinci, há quem sustente que o torso rígido e sem graciosidade foi acrescido por um discípulo menos talentoso

(Paolo Manusardi/Veneranda Biblioteca Ambrosiana/.)

SALVATOR MUNDI (1490-1500)
O quadro saiu da obscuridade, em 2005, rumo à glória: reconhecido (mas não por todos) como um Da Vinci, foi leiloado em 2017 pelo valor recorde de 450 milhões de dólares. Ao negar seu empréstimo, o dono — que seria um príncipe árabe — provocou a grande baixa da mostra

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(Tim Nighswander/Imaging 4Art/.)

HOMEM VITRUVIANO (1490) 
Ainda bem que a Justiça italiana liberou, aos 45 do segundo tempo, a ida do desenho ao Louvre: o homem que se estica nos limites de um círculo resume a união entre arte e ciência feita pelo pintor

(Gallerie Dell'Accademia/.)



Veja Mona Lisa em realidade aumentada

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Posicione a câmera do seu celular ou leitor de QR code sobre a imagem acima e confira a Mona Lisa em realidade aumentada. Outra possibilidade é acessar abr.ai/mona-lisa para ver o efeito. Com os dedos, em um movimento de pinça, é possível aumentar ou diminuir a imagem. Para movê-la, toque, segure e arraste.

Publicado em VEJA de 30 de outubro de 2019, edição nº 2658

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