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Antídoto à ressaca virtual

A cura do cibervício está em uma invenção ancestral: o livro

Por José Francisco Botelho
Atualizado em 8 fev 2019, 07h00 - Publicado em 8 fev 2019, 07h00

Sócrates não gostava de livros. Ao menos, é o que sugere certa passagem em Fedro, de Platão. Para demonstrar que o diálogo pessoal é superior à leitura, Sócrates conta a seguinte parábola sobre a invenção da escrita: o deus egípcio Tot foi o criador das artes e ciências; terminado o rol de inovações, mostrou-­as a Amon, divindade rabugenta e previdente; Amon aprovou a álgebra, a geometria e o jogo de xadrez, mas franziu o cenho ao ver o alfabeto (ou, no caso, os hieróglifos). “Essa invenção vai introduzir o esquecimento no espírito de todos que a aprenderem”, previu. “Os homens deixarão de exercitar a memória, pois colocarão toda a sua fé em signos externos.”

O discurso antilivresco de Sócrates é dos primeiros exemplos do que mais tarde seria chamado ludismo — a ideia de que o avanço tecnológico acabará nos conduzindo a uma catástrofe generalizada. É estranho, e revelador, que a condenação socrática tenha chegado até nós por meio de um livro: ocorre que as ondas tecnofóbicas costumam se propagar exatamente nos meios que condenam.

Mas vale notar também que, num ponto, Sócrates — ou Amon — estava certo: a introdução da escrita alterou a forma como o cérebro humano funciona. Os milhares de versos da Ilíada e da Odisseia foram criados oralmente e guardados na lembrança; mas eu não conseguiria compor metade deste parágrafo sem fazer duas ou três notas. Depois de assimilarmos a invenção de Tot, nossa memória jamais foi a mesma.

Toda inovação técnica implica acréscimos mas também subtrações à experiência humana. Os ganhos da revolução digital são inegáveis — mas ela também implicou perdas e síndromes que já configuram uma ressaca virtual globalizada. O cérebro humano está mudando de novo, e nem sempre para melhor: a chuva meteórica de informações fragmentárias prejudicou nossa capacidade para a contemplação e o raciocínio li­near; o imediatismo das redes nos condiciona a reagir de forma superficial e raivosa à complexidade do mundo; o ethos da exposição constante faz com que o íntimo se amolde ao coletivo, e o resultado é um sectarismo aluci­nado, intrometido e onipresente.

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Não me entendam mal; não sou um ludista nem pretendo deletar minhas contas nas redes sociais. Mas toda ressaca precisa de um antídoto. O remédio que encontrei contra os excessos da nova reprogramação cerebral foi recorrer à velhíssima invenção de Tot: curei os achaques do cibervício retornando, com voracidade dupla, à leitura de imersão. Para que funcione, essa terapia deve ocorrer em doses diárias e envolver obras que nada tenham a ver com temas urgentes ou profissionais; quanto mais aparentemente inúteis, melhor. Alegar falta de tempo é autoengano: meia hora de leitura concentrada todos os dias é o suficiente para salvar nossa alma — ou aquelas partes de nosso antigo cérebro que não deveriam cair na lixeira da evolução.

Claro, todo remédio tem seu efeito colateral: li tanto, nos últimos meses, que perdi temporariamente a disposição para conversar cara a cara. Não sei o que Sócrates diria a respeito.

Publicado em VEJA de 13 de fevereiro de 2019, edição nº 2621

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