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A leveza otimista da MPB de Mahmundi

Carioca fala a VEJA sobre o novo disco, 'Para Dias Ruins', e reflete sobre as pedras enfrentadas ao longo da jornada para realizar o sonho de ser cantora

Por Lucas Almeida
Atualizado em 18 ago 2018, 10h00 - Publicado em 18 ago 2018, 10h00

O frio de São Paulo incomoda a carioca Marcela Vale, ou melhor, Mahmundi, que treme com a temperatura baixa que tomou a capital paulista esta semana, mesmo período em que chegou às lojas seu novo disco Para Dias Ruins. O álbum é o segundo de sua carreira, mas o primeiro abraçado por uma grande gravadora, a Universal Music. Em contrapartida, a cidade aqueceu, com o perdão do trocadilho, a carreira e a maturidade da cantora de 31 anos criada em Marechal Hermes, subúrbio do Rio de Janeiro. “Eu era meio molecona no Rio. A vida lá é muito pautada na violência. Não tem tarde feminista, ou essas discussões que temos aqui”, diz a VEJA em entrevista, no escritório de sua nova gravadora. 

Quando estourou no cenário independente com o belo disco que leva seu nome, em 2016, Mahmundi optou viver alguns meses em São Paulo em busca de novas experiências. Se envolveu com nomes atuais da MPB, como Céu, Liniker e Rico Dalasam, aprimorou suas habilidades musicais, e compôs letras que deram cara ao trabalho atual, um compilado de canções otimistas, com sonoridade que passeia pelo samba, MPB e soul, com um toque de anos 1980. A felicidade das faixas são parte do estado de espírito da cantora, mas também uma resposta ao que ela viveu e aprendeu, em situações de frustração e tristeza, como a morte do sobrinho de 17 anos. “Foi muito difícil ver, na página da polícia, que mais um tinha sido morto, como um troféu”, lembra.

Mahmundi começou a cantar e tocar instrumentos na igreja evangélica que a família frequenta. Em uma época em que o uso da internet era limitado, ela se refugiou nas lan houses, onde teve contato com Avril Lavigne, primeira grande artista que lhe chamou atenção, puxando o repertório de outros nomes, como Norah Jones e Jesse Harris. Arrumou um emprego como técnica de som no Circo Voador, espaço cultural no bairro da Lapa, enquanto compartilhava suas composições no quase extinto Myspace. Em 2010, deixou o emprego para seguir o sonho de ser cantora.

A cantora Mahmundi (Hick Duarte/Divulgação)

A cantora recebeu a reportagem de VEJA no escritório de sua nova gravadora. Confira a entrevista:

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Quanto tempo levou a criação de Para Dias RuinsEstou pensando sobre o tema e a estética desde 2016. Tinha um álbum pronto, mas ele parecia muito com o Mahmundi e quis dar um passo para tentar entender como me expandir. Em outubro do ano passado comecei tudo de novo e só terminei quase agora, sendo carinhosamente obrigada a lançar.

Teve alguma grande inspiração? Minha vinda para São Paulo, em 2016, foi um fator que me fez entender um novo contexto social. Eu era meio molecona no Rio, morava no subúrbio e a vida lá é muito pautada na violência. Não tem tarde feminista, ou essas discussões que temos pautadas aqui. Foi um tempo de amadurecimento pessoal. O disco passou por isso também, eu não conseguia retomar, porque não queria fazer um disco igual ao outro, nem um de pop, feito por uma demanda.

O que estava ouvindo na época? Ouvia muito instrumental, como música africana dos anos 1950 e muito Dona Ivone Lara também. Voltei para o Rio e comecei a ir para a quadra da Mangueira e do Salgueiro, que é o que faço todo final de semana. Lá, eu consigo ver show do Belo, ver passistas e comer feijoada. É um approach social que me resgata uma coisa popular. Estava sentindo falta de unir esse universo de amadurecimento pessoal e esses elementos que faziam parte de mim.

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Este é seu primeiro disco com uma grande gravadora. Como foi o processo de transição? Tinha uma visão muito maravilhosa de um artista de gravadora, porque a primeira grande cantora que me chamou atenção foi a Avril Lavigne. Com o passar dos anos, conheci a história de amigos que já tinham passado por gravadoras e contavam que estavam na geladeira. Então, criei um terror. Quando surgiu o convite para entrar na Universal, tinha o desafio de mergulhar com a minha experiência. A gravadora, para mim, sempre foi uma base onde eu poderia aprender e é o que está acontecendo. Além disso, me possibilita caminhos, que o cenário independente não consegue traçar, por conta de grana e de contatos. Quero, daqui a dez anos, ainda estar desenvolvendo trabalhos para cá.

O seu primeiro álbum teve uma recepção muito boa. Sentiu receio ao voltar para o estúdio? Fiquei receosa por várias questões. Não tinha visto na Universal um artista parecido comigo. Então, pensei: se eu não fizer um som similar ao meu, eles não vão ter o artista que contrataram. Existe esse cálculo prático. Além disso, tinha o receio da crítica das pessoas da internet, porque elas se apegam, mas a opinião, hoje, é muito influenciável. Poderia ficar refém ao universo de som que eu mesma construí. Por isso, preferi acompanhar todo o processo e acabei produzindo também. Isso me deixou mais tranquila.

Mahmundi nas gravações do clipe ‘Qual É A Sua’ (Hick Duarte/Divulgação)

Discussões sobre racismo ganharam novo espaço recentemente. Como isso reflete na sua identidade? Comecei a refletir sobre isso com a história do meu sobrinho. Ele era um menino de 17 anos do interior do Maranhão que via muita coisa na internet e entrou para o crime para ter roupa de marca. Ele foi assassinado por um policial, enquanto fazia um assalto e essas questões foram me batendo. O Thiago sempre sofreu racismo e se empoderava ali, pegou uma arma e começou a se achar superior. O racismo e toda diminuição do indivíduo gera reações muito agressivas. Ele falava “eu não gosto de ser preto, tia”. Via ele usando roupa da Lacoste, porque o que ele tinha de referência era o menino branco que usava. Talvez, ele ficasse um pouquinho mais branco assim. Foi muito difícil ver, na página da policia do Maranhão, que mais um tinha sido morto, como um troféu. Quando eu voltei para o Rio, mesmo tendo grana, continuei sendo uma mulher negra na Zona Sul, ou seja, eu continuava sendo nada para a sociedade.

O Thiago sempre sofreu racismo e se empoderava ali, pegou uma arma e começou a se achar superior. O racismo e toda diminuição do indivíduo gera reações muito agressivas

Mahmundi, sobre o sobrinho, morto aos 17 anos

A vivência em São Paulo expandiu de alguma forma sua visão sobre a cultura negra? São Paulo me abriu muitos debates. Quando eu cheguei, andava em um bonde com a Tássia Reis, o Rico Dalasam e a Liniker, por exemplo. Andar com outras pessoas como você te deixa mais vulnerável a entender a situação em que vivemos. Em compensação, isso me deixou muito triste. O ponto alto disso foi quando Marielle morreu, no começo do ano. Tenho tentado absorver tudo isso de uma forma que não me consuma. Entendo que temos que dar um passo de cada vez. É uma luta muita longa. Acho que os meus filhos vão saber lidar com isso melhor do que eu.

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Seu primeiro contato com a música foi na Igreja Metodista. Como é a sua relação com a religião hoje? A morte do meu sobrinho me deu uma clareza de que não é no mundo espiritual que as coisas se combatem, é no físico mesmo. Os dogmas e pecados pregados pela igreja me frustavam muito. Eu ficava pensando: se eu morrer, chegar lá e não tiver nem inferno, nem céu nenhum, eu vou ficar muito bolada. Acabei desmistificando isso tudo. Hoje, eu medito, leio a Bília, mas é difícil, com aquele bando de condenação. Já nem imagino Deus como uma cara só.

Você já trabalhou como técnica de som no Circo Voador. Quando decidiu que estava na hora de investir na própria música? Em dezembro de 2010, a Pitty gravou um DVD no Circo e quando eu estava montando o equipamento dela, pensei que nunca ia sair dali, ficaria montando palco para os outros a vida inteira. Ganhava bem, mas estava vendo a minha vida passar. Naquele dia, decidi que ia pedir demissão. Entre 2011 e 2012, comecei a pegar teclados nos porões da igreja e fui fazer meu disco. Foi uma época em que fiquei sem dinheiro nenhum. Hoje, vejo que fui muito corajosa mesmo.

Os dogmas e pecados pregados pela igreja me frustavam muito. Eu ficava pensando: se eu morrer, chegar lá e não tiver nem inferno, nem céu nenhum, eu vou ficar muito bolada

Mahmundi sobre religião
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Ser mulher e técnica de som em uma grande casa de show foi um desafio? Quando eu era técnica de som, tinha que lidar com um monte de homem velho, que tem medo de você roubar o lugar dele. Lembro que me ofendiam falando: “Você sabe mexer em uma mesa digital, mas sabe passar camisa?”. Eu arrumava confusões por isso. Tinham caras que tentavam ser legais e falavam com “carinho”: “Você não quer fazer luz? É mais leve”. Existia uma diminuição. Aprendi que precisava me impor no meu lugar. As pessoas esperavam um homem alto para um técnico. Da mesma forma, tive que me empoderar para bancar meu nome como artista. Com a minha equipe, já aviso que o que eles fazem enquanto estão trabalhando comigo, até chegar ao hotel, estão todos lidando com o nome da Mahmundi. Não quero abrir o Facebook e ver um textão, por exemplo, de alguém que sofreu alguma coisa durante um evento por causa da minha equipe.

Estar em um lugar mais estável contribui para que os episódios de machismo diminuam? Acho que as pessoas têm um pouco mais de cuidado. É um momento de transformação da indústria para todo mundo. Tem vários artistas fora do padrão acontecendo e temos que ficar ligados, como produtores. Não podemos só ficar reclamando e achando que a música está ruim. Toda vez que alguém fala de artista sertanejo hoje, não sou eu que vou ficar do lado rindo. É o maior ritmo do Brasil, queira você ou não. Se o Chico Buarque lançar um disco hoje e a Simone & Simaria também, são elas que vão bombar, não ele. Temos um país defasado. Não dá para querer cultura e elitismo nesse momento.

Se o Chico Buarque lançar um disco hoje e a Simone & Simaria também, são elas que vão bombar, não ele. Temos um país defasado. Não dá para querer cultura e elitismo nesse momento

Mahmundi
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Foi algo que você pensou para o seu álbum também, que fosse mais popular? Espero que meu álbum seja ouvido por mais pessoas. Às vezes eu fico enchendo a música de elementos, mas lembro que quando ela chegar no celular, em que só sai quatro frequências, as pessoas vão reclamar que a voz da cantora sumiu. Hoje, eu trabalho com poucas frequências, a voz fica na frente e consigo chegar em mais gente. Skank, Ivete, Cidade Negra são um reflexo disso. Essa é a minha meta: fazer um disco bem produzido com canções populares.

 

Como você vê a importância dessa diversidade de cantores? Eu não sei se eu estaria aqui, na Universal, se não fosse a internet. A gente está em uma indústria mais plural hoje, que possibilita cada um ser quem é. Isso só tende a crescer. Não sei se uma mulher negra, hoje, que não está mega empoderada, com um batonzão e carão, tem um lugar. Prefiro buscar um jeito de me alimentar melhor e dormir cedo do que comprar base e maquiagem. Se cada um puder ter a oportunidade de ser como é, as pessoas se sentirão mais abertas, sem precisar se colocar em um determinado lugar.  

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