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Um retrato do Brasil analfabeto – Sobrevivendo na selva das vogais e consoantes

Os obstáculos enfrentados diariamente pelos brasileiros que não sabem ler

Por Branca Nunes
6 abr 2014, 16h04

“Às vezes tenho a sensação de que não sou ninguém, mas eu sou alguém. Posso não ler, mas sou inteligente”, diz Verônica

“Onde é a saída?”, perguntou Maria Verônica Marcelino da Cruz Conceição a um funcionário da linha 4 do metrô de São Paulo ao desembarcar pela primeira vez na estação República, no centro da maior metrópole brasileira. “É só subir a escada rolante que você já verá as placas”, ouviu em resposta. Essas 12 palavras teriam bastado se não tropeçassem na barreira invisível. Verônica não sabe ler (nem escrever) – e, naquele 13 de fevereiro de 2014, como o trajeto lhe era desconhecido, não podia contar com a maior aliada dos 14 milhões de analfabetos que circulam diariamente pelo território brasileiro: a rotina.

É graças a essa rotina que utilizar o transporte público para ir e voltar do trabalho, fazer compras no supermercado ou buscar o filho na escola se tornam atividades tão banais. Quando está no ponto perto de casa, Verônica sabe dizer, por exemplo, se o ônibus que desce a rua é o Tamboré ou o Vale do Sol só de olhar para o desenho do nome escrito no letreiro do coletivo.

Mas naquele 13 de fevereiro, quando precisou utilizar um metrô que não conhecia, andar por ruas onde nunca tinha estado e ir até um prédio que jamais tinha visto, o sentimento que a acompanhava era o medo. “Tenho medo de me perder, ou que me passem a informação errada”, confessou. “Tenho medo do que não conheço”.

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Aos 49 anos, com menos de 1,60 de altura, pele morena e cabelos alisados tingidos num tom puxado para o vermelho (a cor preferida), ela montou um acervo de técnicas para vencer desafios semelhantes: primeiro, pede alguma dica sobre o trajeto para quem lhe passou o endereço (qual linha de ônibus, trem ou metrô deve pegar, para qual direção, o nome do bairro e pontos de referência). Antes de sair de casa, a filha mais nova ou a patroa escrevem o nome da rua em um pedaço de papel. Por fim, sai perguntando, a cada nova etapa do caminho, qual o próximo passo a seguir.

​Dentro dos vagões de trens e metrôs, o áudio que informa em voz alta qual é a estação é uma ajuda e tanto. Do lado de fora, Verônica depende da bondade de estranhos. Com o papel na mão e baseando-se em critérios bastante pessoais, mostra o nome da rua para aqueles que considera confiáveis – curiosamente, a maioria dos escolhidos naquele dia eram homens, com menos de 40 anos, bem vestidos, quase todos com um celular na mão – e pergunta: “Como faço para chegar aqui?”. Jamais confessa que não sabe ler. Esconde a informação não só de desconhecidos como de pessoas próximas.

Tão próximas quanto um ex-namorado com quem Verônica se relacionou por dois anos. Ele mandava mensagens por celular, ela mostrava para a filha. Ele pedia para Verônica ler alguma coisa, ela dizia que estava sem óculos. Ele perguntava por que ela nunca lhe escrevia, ela justificava que preferia conversar por telefone. “Acho que ele desconfiava, mas nunca perguntou nada”, conta. “Morria de medo que ele deixasse de gostar de mim”.

Noel, o segundo marido de Verônica (e o que a fez mais feliz), demorou três anos para descobrir o segredo. “Eu queria perguntar uma coisa, mas não é para você ficar chateada”, ensaiou Noel. “Você sabe ler?”. Ela criou coragem e respondeu: “Presta atenção, porque eu só vou falar isso uma vez: eu não sei ler”. Nunca mais tocaram no assunto até que ele morreu de enfarte algum tempo depois.

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Com o segundo marido, teve Giovana – a quem chama Jojó -, a caçula de seis filhos: Cláudia, Ana Paula, Liliane e Jonathan, do primeiro casamento, e Daiane, sobrinha da ex-mulher de Noel, adotada pelo casal aos 10. Embora todos saibam ler, só um terminou o ensino médio. A esperança é Jojó que, aos 11 anos, sonha ser pediatra.

O começo – Paraibana de Santa Rita, município na região metropolitana de João Pessoa distante 11 quilômetros da capital, Verônica foi confrontada aos 9 anos com o dilema: estudar ou trabalhar? Obrigada a optar pelo segundo para ajudar a mãe a conseguir comida, tornou-se babá de outra criança sete anos mais nova. “Ela era uma menina má, que dizia que eu roubava seus brinquedos”, recorda. Quando a situação da família tornou-se insustentável, o pai abandonou a mulher com os nove filhos e partiu para São Paulo.

A babá se transformou em ajudante de cozinha num restaurante e, depois, em operária de uma fábrica de bolachas. Aos 15 anos, foi levada com a mãe e os irmãos para São Paulo pelo tio, que já não suportava ver a cunhada e os sobrinhos em estado tão degradante. Quando chegaram ao destino, o pai de Verônica tinha outra vida, outra casa e outra família – que acabou deixando ao deparar-se com a visita inesperada. Os pais, que continuam juntos, moram hoje em Registro, no litoral paulista.

Verônica casou com Manoel logo depois do desembarque na metrópole. “Achei que ganharia minha liberdade. Foi um doce engano”. O relacionamento durou 16 anos. Desde a mudança para São Paulo, nunca mais colocou os pés – nem pretende colocar – na Paraíba. “Não tenho nenhuma lembrança boa da minha infância”, encerra o assunto.

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Até matricular os filhos na escola, a leitura nunca lhe fizera falta. “Eu conseguia me virar bem”, garante. “Mas comecei a querer acompanhar as lições de casa e participar mais da reunião de pais”. Hoje, o analfabetismo é um tormento.

“Às vezes tenho a sensação de que não sou ninguém, mas eu sou alguém. Posso não ler, mas sou inteligente”, diz. Verônica reconhece marcas como Café Pilão, Coca-Cola, McDonald’s e Adidas pelo logotipo. Para fazer a lista de compras na casa de Regina Vilma Ruiz, onde trabalha como empregada doméstica há mais de duas décadas, copia o nome dos produtos da embalagem – de vez em quando consegue associar que o ‘A’, de arroz, é a mesma letra do ‘A’, de açúcar. Tornou-se uma exímia cozinheira apenas observando outras pessoas ao pé do fogão e, quando não está nervosa, é capaz de desenhar o primeiro nome.

Alguns anos atrás perdeu a carteira de identidade. Decidida a não ter mais a digital estampada no documento sobre a sentença “não alfabetizada”, matriculou-se num curso de alfabetização de adultos. Estava quase conseguindo juntar consoantes e vogais quando foi surpreendida pela morte de dois irmãos – um de morte morrida, o outro de morte matada. Cláudio, o xodó de Verônica, foi assassinado ao ser confundido com o patrão no momento em que chegava para trabalhar. O choque foi tão grande e a depressão tão intensa que as letras simplesmente desapareceram da memória.

Também é para não expor o analfabetismo que ela optou por fazer parte da multidão de mais de 50 milhões de brasileiros que não possuem conta bancária. Alçada à nova classe média pelos malabarismos federais, Verônica insiste em continuar considerando-se pobre. Os cerca de 1 500 reais – somados vale transporte, seguro saúde e outros benefícios – que recebe de salário desaparecem no fim do mês. Roupas novas, restaurantes e viagens são luxos que ela não pode ter nem proporcionar para os filhos. Por causa do aumento dos preços dos alimentos – inflação que só o governo insiste em não enxergar – o sonho de conhecer Porto Seguro nas férias que se aproximam precisará ser adiado por mais um ano.

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Outro documento que a intimida é o título de eleitor. Embora não seja obrigada, garante que participa de todas as eleições. Apesar disso, não se recorda em quem votou em 2012 nem em 2010. Não sabe o nome do prefeito e do governador de São Paulo nem quem foi o presidente da República antes de Lula – só faz questão de dizer que nunca votou nele. Se lhe pedem que cite algum político, lembra de Dilma Rousseff, Lula, Paulo Maluf e Marta Suplicy e em seguida ressalva que não simpatiza com nenhum. “Gostava muito do José Sarney, aquele que morreu”, confunde-se. Sobre o mensalão? “Não sei o que é”. Propina envolvendo a construção do metrô da capital paulista? “Nunca ouvi falar”.

Suas fontes de informação são os telejornais, as novelas ou conversas com vizinhos e amigos. Adora filmes, principalmente as sequências de Harry Porter e Rambo, mas raramente vai ao cinema. Afirma que não gosta de espetáculos de teatro antes de admitir que nunca viu uma peça. Prefere o forró com o namorado.

Vaidosa, abusa dos decotes que exibem o bonito colo e jamais usa saias para ocultar as varizes que deixam ainda mais doloridas as pernas castigadas pelos 54 degraus absurdamente íngremes que é obrigada a subir diariamente para sair de casa.

Na residência alugada de três cômodos em que mora com a filha caçula, localizada num bairro pobre de Barueri, na Grande São Paulo, o bordado dos panos de prato e da toalha sobre o fogão combina com o rosa da parede da cozinha. O azul do quarto aparece também no enfeite do armário recém-comprado em seis prestações pelo carnê das Lojas Marabrás e a sala, pintada de laranja, ostenta porta-retratos com fotos de Jojó e de Mery, a melhor amiga. É ali que Verônica guarda seu maior tesouro: uma antiga coleção de livros de receitas que ganhou da patroa faz três anos.

Não conseguiu ler nenhum. Mas folheia com olhar apaixonado os cinco volumes, observa as imagens desbotadas, tenta adivinhar os ingredientes pelas fotos e reproduzir os pratos. São os únicos livros da casa.

Há um mês, fez uma promessa: “Vou conseguir ler esses livros”. Para isso, vai matricular-se novamente num curso de alfabetização para adultos. Quando isso acontecer, a jornada, que começa diariamente às 5h30 e é encerrada por volta das 19h, depois de quase duas horas nos vagões dos trens metropolitanos lotados, será prorrogada até as 22h, quando as aulas terminam.

Caso complete o curso, ela fará parte de uma minoria. De cada 10 adultos que decidem se alfabetizar, sete desistem do objetivo antes de ler a primeira palavra. Enquanto isso, Maria Verônica Marcelino da Cruz Conceição será apenas mais um nome entre os milhões de brasileiros perdidos na selva das vogais e consoantes.

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