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Mais Médicos: criação de vagas em faculdades é promessa eleitoreira, diz diretor da Escola Paulista de Medicina/Unifesp

Por Raquel Carneiro Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 24 Maio 2016, 17h03 - Publicado em 31 jul 2013, 07h07

Doutor em cardiologia e livre-docente em clínica médica, Antônio Carlos Lopes entrou na graduação da Escola Paulista de Medicina, hoje incorporada à Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), em 1965. Décadas depois, se tornaria diretor da mesma faculdade, considerada referência no ensino médico no Brasil. Costuma dizer que é médico por vocação e docente por circunstâncias. Por quatro anos, coordenou o Departamento de Residência Médica do Ministério da Educação, em Brasília. A experiência o ajudou a desenvolver conceitos bem definidos sobre o ensino da medicina no Brasil, e também sobre a proposta do governo contida no controverso programa Mais Médicos de criar, até 2017, quase 11.500 vagas em cursos de medicinas no Brasil – com especial atenção a localidades fora dos grandes centros. “É um absurdo. É uma utopia. É proposta de quem não sabe nada de medicina”, diz na entrevista a seguir. A opinião já foi dita diretamente ao MEC, já que Lopes faz parte da comissão nacional criada pelo governo para discutir o Mais Médicos.

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O governo federal propôs a criação de novas vagas em faculdades de medicina fora dos grandes centros, uma tentativa de descentralizar a formação. Qual a opinião do senhor a respeito? A maioria das faculdades afastadas dos grandes centros não tem condições de manter um curso de medicina. Ao invés de criar novas vagas, ou novas escolas, deveríamos aprimorar as existentes. Na maior parte dessas escolas, incluindo algumas públicas, quem está ensinando deveria estar aprendendo. Já tive experiências de dar aulas em locais assim no passado, onde o ambulatório era uma casa de sapê, com insetos nas paredes. Ambulatórios sem pia, sem banheiro, sem mesa, sem receituário, sem caneta. Só tinha estetoscópio se o médico levasse o dele. Como ensinar medicina para alguém nessa situação?

A proposta do programa Mais Médicos prevê a criação de mais de 11.000 vagas em cinco anos. É um projeto viável? É um absurdo. É uma utopia. É proposta de quem não sabe nada de medicina. Nunca ensinou medicina, nunca pegou na mão de um aluno. Em uma faculdade de direito pode-se ampliar o número de vagas de cinquenta para 100 alunos com facilidade: a turma aprende ouvindo o professor falar ao microfone. Medicina não funciona assim: é preciso leito, preceptor, ambulatório. Precisa ensinar o indivíduo a produzir conhecimento. Propor algo assim é olhar a medicina pela janela do gabinete e querer fazer campanha eleitoreira em cima do médico.

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O senhor não acha necessária a criação dessas vagas? Não há necessidade. O que é preciso é infraestrutura. Assim, os médicos poderiam ir ao hospital para trabalhar, e não para ficar lá sentado olhando o paciente sem ter como fazer algo. O que é necessário é a melhoria das condições locais de cidades onde já existem as escolas de medicina. Onde há enfermagem, dentista, terapeuta para cuidar das sequelas do paciente traumatizado. Tudo isso é necessário para uma boa saúde e um bom ensino, seja onde for. O governo quer colocar médico no mercado como se fosse vendedor de alguma coisa. Não tem a menor noção do que é a formação de um médico. Porém, os filhos desses indivíduos, quando ficam doentes, não serão tratados nestes lugares, e sim em hospitais particulares e caros. Nem os políticos que estão em Brasília vão aos hospitais de lá, todos vem para São Paulo. Por quê? Não são bons os hospitais e os médicos que eles estão formando no SUS?

Então, como descentralizar o ensino e a prática da medicina? Primeiramente, existe a necessidade de equipar o local. Ter leitos, ambulatório, o mínimo de infraestrutura. Com isso, os médicos vão para lá com muita boa vontade. Médicos formados adequadamente através de uma faculdade de medicina aberta em um local onde há como ensinar. Não dá para abrir uma faculdade de medicina em qualquer lugar.

No futuro, quais podem ser as consequências de cursos de medicina criados às pressas? A consequência é mais uma grande quantidade de alunos que saem da faculdade sem saber nada. Garanto que pelo menos 50% dos estudantes que saem de algumas faculdades de medicina no Brasil hoje já não têm condições de tratar nem diarreia e gripe. É uma calamidade. Eu coordenei a residência médica em Brasília por quatro anos e é lamentável a quantidade de alunos que vi saindo da faculdade sem as condições para se tornarem bons médico – a maioria pagando uma fortuna de mensalidade. O Brasil é o único lugar no mundo que faculdade de medicina dá lucro.

Falta de profissionais ou de estrutura: qual o real problema da saúde brasileira? Falta de infraestrutura. Todas as mortes a que assistimos, pessoas aos montes caindo de macas em prontos-socorros, são mortes evitáveis. Quem é o culpado por essas mortes, os médicos? Não são os médicos, é a falta de infraestrutura. Querem expandir vagas, trazer médicos de fora ou levar médicos brasileiros com salários altíssimos para lugares afastados, mas essas ações são inadequadas. É jogar dinheiro público no ralo, pois, sem infraestrutura, o médico não pode fazer nada. É tratar o médico como uma mercadoria. Pagando bem ele vai para um lugar afastado: no entanto, ficará parado, sem ter como agir, pois não tem condições estruturais para exercer a medicina.

O que é necessário para a criação de um curso de medicina? O curso de medicina é complexo. Primeiramente, é preciso ter quem ensine. E quem ensina precisa ter formação acadêmica. É necessário também um hospital equipado para a faculdade. O ensino deve ser presencial e não em computadores com casos simulados.

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Como deve ser formado o docente? Uma escola médica precisa de um corpo docente qualificado: 30% dos professores, pelo menos, devem ser doutores. No mínimo, a mesma proporção deve atuar em tempo integral. O aluno precisa aprender no contato com professores que possuem ética, habilidade e atitude. O ideal é que o corpo docente seja responsável pelo tratamento dos pacientes internados ali, para que não haja duas condutas diferentes. Por exemplo, se uma escola usa um hospital que não é da faculdade, o aluno aprende no curso uma maneira de tratamento, mas quando ele chega ao hospital público vê que quem cuida do doente está tratando de outra forma – às vezes com outro diagnóstico. Isso não deve acontecer.

Qual a maior dificuldade dos cursos de medicina no Brasil? O principal problema é que não há quem ensine em número suficiente. Isso ocorre porque não existe carreira para o docente: não é qualquer bom médico que está disponível para ser professor de faculdade. O médico tem que ser formado através de professores que tenham feito uma carreira universitária, que saibam ler artigos científicos. Esses profissionais devem ver a medicina de uma forma social, com ética, moral, humanismo e humildade.

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