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Livro recolhido pelo MEC não é apologia do incesto. É seu oposto

Por que é um erro e uma estupidez a decisão do ministério de retirar das escolas exemplares de 'Enquanto o Sono Não Vem'

Por Maicon Tenfen
Atualizado em 17 jun 2017, 08h00 - Publicado em 17 jun 2017, 08h00

— Isso aqui não é literatura — vociferou o vereador. — É um lixo!

E exibiu para a assembleia o objeto da sua repulsa, um livrinho de capa azul com o desenho de um menino tocando flauta.

— Já liguei para a secretária de Educação — prosseguiu o político. — Ela mandou recolher todos os exemplares das escolas públicas municipais.

Na hora dos apartes, os demais vereadores fizeram fila até o microfone e parabenizaram a indignação do orador. — Vamos assinar uma moção de repúdio — disse um deles. — Temos de passar um pente-fino nas escolas — disse outro, até que um terceiro, mais delirante, reivindicou o retorno de disciplinas como a extinta educação moral e cívica.

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— Concordo 100 por cento com Vossa Excelência — apoiou o orador. — Eu sou do tempo em que toda semana se cantava o hino na escola.

***
A cena ocorreu há alguns dias na Câmara de Vereadores de Blumenau, município catarinense situado a 150 quilômetros de Florianópolis. Na verdade, os heroicos representantes do povo estavam apenas chutando um cachorro morto. O MEC acabara de determinar que 93 000 exemplares do livro em questão, Enquanto o Sono Não Vem, de José Mauro Brant, fossem recolhidos das escolas públicas do país. A alegação é que a obra seria imprópria para estudantes em processo de alfabetização.

Um dos recontos do livro, inspirado em tradições populares, narra a história de um rei que pretende se casar com Eredegalda, a mais bela de suas filhas.

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O convite é feito assim:

— Se quiseres casar comigo, serás minha esposa, e tua mãe, nossa criada.

Não deixa de ser curioso que o discurso do nosso vereador — e de muitos que condenaram o livro — tenha omitido a resposta da menina:

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— Isso não, querido pai, isso não pode ser. Prefiro ficar fechada do que ver minha mãe criada.

Na sequência, por resistir à bestialidade do pai, a menina é trancada numa torre, onde morre de sede.

Se entendermos um conceito simples como “histórias são ferramentas para a vida”, será fácil perceber que o conto de Eredegalda não é uma apologia do incesto, mas o seu oposto. O universo simbólico dos contos de fadas serve para isso mesmo: criar condições psicológicas para que as crianças se defendam do autoritarismo e da barbárie. Se não fosse assim, o MEC também deveria recolher os livros com a história de Chapeuzinho Vermelho. O clássico surgiu para que temas como estupro e assédio sexual fossem discutidos com crianças de 6, 7 e 8 anos, justamente a faixa etária indicada para a leitura de Enquanto o Sono Não Vem.

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A decisão do MEC quanto ao livro da Eredegalda se ampara no parecer técnico da Secretaria de Educação Básica (SEB), que considera as crianças limitadas, sem “autonomia, maturidade e senso crítico para problematizar determinados temas”. Mais grave é que o parecer fecha os olhos para a violência sexual — um problema que existe, inclusive, no seio de muitas famílias brasileiras — e assim impede que as crianças criem defesas individuais contra as situações do gênero. Se o objetivo da censura foi proteger nossas crianças, como dito por tantos demagogos, lamento informar que o tiro saiu pela culatra.

Apesar disso, o ministro da Educação, Mendonça Filho, reafirmou o propósito de “reavaliar” todo o material de leitura disponível nas escolas. Menos, ministro, por favor. Não sei exatamente por que alguém com seu currículo foi nomeado para uma pasta tão importante, mas tenho certeza de que não foi para incentivar devassas em bibliotecas públicas.

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É que o tom justiceiro dos vereadores de Blumenau se repetiu em inúmeras cidades brasileiras, de Sidrolândia (MS) a Londrina (PR), de Vila Velha (ES) a Recife (PE). Não são só os blumenauenses que querem passar o “pente-­fino” no currículo e na literatura escolar. Com as porteiras abertas pelo MEC, a histeria inquisitiva está se generalizando Brasil afora.

As decisões do governo federal deveriam pelo menos preservar os estudantes da sanha vingativa de políticos populistas que ainda não entenderam para que servem os livros. Isso vale não apenas para os conservadores, mas também para o pessoal do politicamente correto, haja vista o carnaval que há alguns anos se montou sobre Caçadas de Pedrinho, de Monteiro Lobato, acusado de difundir a intolerância e o racismo.

Ganha a hipocrisia, perde a educação.

Toda censura se instaura a partir de uma boa causa. Começamos a proibir livros para “proteger as nossas criancinhas” e terminamos compondo um índex de obras nocivas ao governo (que poderia ser representado por esse rei imoral que oprime a família). Depois vemos as fogueiras nos pátios das repartições e, por fim, pessoas sendo presas e torturadas por abrir um livro em praça pública. Vivemos isso há pouquíssimos anos no Brasil. Com essa vocação autoritária dos nossos políticos, basta um titubeio para o pesadelo voltar.

***
Eu deveria terminar com um gracejo — como é que se combate a violência sexual com o retorno da educação moral e cívica? —, mas o assunto é sério demais para brincadeiras.

* Maicon Tenfen é escritor e professor de literatura brasileira na Universidade Regional de Blumenau (Furb)

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