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Fui vítima da propaganda chinesa?

Por Da Redação
18 dez 2011, 06h03

O fluxo de informação é cuidadosamente controlado na China, todos os canais de mídia são estatais, e o esforço para fazer com que eu (e qualquer estrangeiro) saia com uma boa impressão do país é nítida e, às vezes, cômica. Nas reuniões que tive nas universidades, o requinte era tão grande e o cerimonial tão elaborado que me senti como se fosse parte da comitiva de Nixon indo falar com Mao.

Quando o Brasil se redemocratizou eu tinha oito anos, e passei o resto da minha vida em democracias ocidentais. Fazer uma viagem de reportagem para um país hermético, ditatorial e onde ninguém fala inglês foi um desafio e tanto.

Começou com o processo de emissão do visto, que demorou intermináveis oito meses. A embaixada no Brasil só poderia emiti-lo se alguém da China me convidasse para visitar o país. Poderia obter o convite de alguma empresa brasileira com negócios lá, mas não adiantaria muito: como a maioria das escolas e universidades é pública, precisaria da chancela do governo. Mas a embaixada no Brasil não conseguia achar a pessoa certa no Ministério da Educação (MOE), minhas tentativas de ligar de madrugada (por conta do fuso de 11 horas) usando o telefone que aparecia no site do MOE esbarravam no fato de nenhuma telefonista falar inglês e o tradutor que me atenderia se recusou a ajudar, dizendo que a preparação da viagem era comigo e ele só trabalharia quando eu chegasse.

Finalmente, depois de muitas idas e vindas, a embaixada achou o contato certo, e depois de muitas cartas, e-mails e explicações, veio o convite. Segundo a pessoa do MOE, foi a primeira vez que eles convidaram um pesquisador para conhecer o sistema educacional chinês e escrever para um veículo de comunicação de massa. Se isso é verdade ou só um agrado eu não sei, mas o certo é que, depois de feito o convite, a recepção foi extremamente atenciosa e tive a oportunidade de me encontrar com muita gente importante e instituições prestigiosas da educação local.

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Na véspera do embarque, pequeno contratempo: o fotógrafo que me acompanharia, um inglês radicado em Pequim há anos, descobre que o meu tradutor – que costuma traduzir todas as autoridades brasileiras e muitos dos jornalistas – é membro do PC. Para evitar mais essa camada de controle sobre o fluxo de informação, trocamos por uma moça chinesa sem filiação partidária. Minha maior preocupação ao chegar era, primeiro, como saber se estavam me dizendo a verdade e, segundo, quão representativa da realidade eram as escolas que estava visitando, já que todas elas haviam sido escolhidas pelo governo.

Não tinha muitas ilusões de que os funcionários da burocracia me diriam algo que não o estritamente permitido pelo Partido. Como resultado, ouvi muitas mentiras, algumas descaradas. Era comum perguntar a um diretor de escola se aquela era uma escola-chave e ouvir que não, para então perguntar a pais e alunos e ouvir que sim. O caminho para se chegar à verdade em uma democracia – a conversa com o político de oposição, a leitura de um jornal crítico, o parecer de órgãos públicos ou de ONGs que monitoram os governos – simplesmente não existe na China. Então o jeito foi ir fazendo a mesma pergunta ao maior número de pessoas e notando as inconsistências no caminho. Para aquilo a respeito do qual só existe a versão oficial, a solução foi checar as experiências de estrangeiros que haviam morado na China ou de reportagens da mídia ocidental a respeito. No fim, creio ter conseguido esclarecer todos os pontos importantes mencionados nesta matéria. As áreas nebulosas foram excluídas do texto final.

Em relação à representatividade das escolas visitadas, confesso não ter me preocupado muito no início. Ficaria no país por dez dias; tinha certeza de que uma hora ou outra, falando com um pai de aluno na rua, no hotel ou num táxi conseguiria, através da velha lábia e jeitinho brasileiro, entrar em alguma escola. Ledo engano. Todas as tentativas foram repelidas. Já no segundo dia senti que o caminho via aliciamento seria difícil, então tentei o carteiraço. Fui a uma escola qualquer, mostrei a carta-convite do MOE e pedi pra falar com o diretor. Não passei nem do portão. O guarda me disse que a visita não estava programada, que o diretor da escola havia falado com a autoridade provincial e não havia recebido autorização. E tchau. O fotógrafo sugeriu então que contratássemos um “fixer”, espécie de produtor quebra-galho que acharia alguém para nos receber. No último dia em Xangai, quando já estava quase jogando a toalha, a estratégia deu resultado, e conseguimos visitar uma escola fora do programa oficial. Para meu alívio, ela era bem semelhante a várias escolas que havia visitado, o que sugere que as escolas ditas medianas que vimos eram realmente medianas. A única diferença entre as escolas oficiais e esta é que nela os professores eram menos sorridentes e afetuosos.

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Chama a atenção, na China, a onipresença do PC. A maioria dos alunos veste um lenço vermelho, sinal de que pertencem à organização chamada “Jovens Pioneiros”, espécie de clube de escoteiros do PC. Os melhores alunos são convidados para fazer parte do Partido quando crescem, assim como muitos dos professores, e esse pertencimento é muito bom para o guanxi (networking). Ninguém vai muito longe na China sem boas conexões com o Partido. Nas próprias escolas, esse monitoramento é constante, ainda que invisível. Além de atrair alunos e professores para suas fileiras, toda escola tem um secretário-geral, cargo acima do diretor, que é do Partido, cujo objetivo principal é se certificar que todos na escola aderem à linha ideológica vigente. Esse profissional nunca é visto.

O fluxo de informação é cuidadosamente controlado na China, todos os canais de mídia são estatais, e o esforço para fazer com que eu (e qualquer estrangeiro) saia com uma boa impressão do país é nítida e, às vezes, cômica. Nas reuniões que tive nas universidades, o requinte era tão grande e o cerimonial tão elaborado que me senti como se fosse parte da comitiva de Nixon indo falar com Mao. Os encontros se deram em enormes salas retangulares, em que eu e meu interlocutor sentávamos em grandes poltronas ao fundo da sala, sempre acompanhados por ornamentados bules e xícaras de chá e pratos de frutas. Aos nossos lados, em fileiras de poltronas menores encostadas às paredes, ficavam nossos respectivos assessores. Como a minha comitiva fosse diminuta – apenas uma tradutora e um fotógrafo – as poltronas do “meu” lado acabavam ocupadas freqüentemente por funcionários da universidade, já que a entourage do meu interlocutor costumava ser extensa, especialmente para presidentes ou vice-presidentes, com assessores, tradutor, fotógrafo, repórter e, provavelmente, alguém do PC.

É lícito que o país tenha interesse em fazer propaganda de si mesmo. Fui vítima dela? Impossível saber até que ponto as informações que obtive foram manipuladas, pela própria opacidade do sistema. Mas me sinto razoavelmente confortável para dizer que creio ter alcançado o objetivo da viagem: conhecer o sistema educacional de Xangai e esclarecer como conseguira a performance demonstrada no PISA. Se o objetivo da matéria fosse conhecer o lado negro da educação chinesa, certamente teria tido mais dificuldades.

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E acho até que consegui um furo. Na volta de um almoço, com a guarda mais baixa, um dos funcionários com quem conversei – cujo nome e localização manterei sigilosos para proteger seu emprego e quem sabe seu bem-estar – me admitiu que Xangai não foi a única província chinesa a realizar o PISA 2009. O exame foi aplicado em outras províncias, mas os resultados não foram comunicados à OCDE. Segundo ele, por problemas de amostragem. Suspeito que por serem piores que Xangai, a ponto de tirar da China o provável primeiro lugar no ranking. Mas a verdade, como em tantos outros temas, ficará confinada ao punhado de big brothers que administram o país.

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