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Decisão nota zero

O adiamento do horário de verão para o dia do Enem prejudicará os estudantes na realização da prova

Por Andrea Bacelar*
Atualizado em 2 nov 2018, 07h00 - Publicado em 2 nov 2018, 07h00

Neste ano, o segundo turno das eleições foi o motivo alegado para o adiamento do horário de verão. Depois de debates entre entidades de diferentes áreas para decidir a nova data, ficou estabelecido que os relógios serão adiantados em uma hora no primeiro domingo de novembro, dia 4 — coincidindo com o primeiro dia do Exame Nacional do Ensino Médio, o Enem. Assim, os estudantes, que já sentem o stress naturalmente causado por uma prova, terão de lidar com a sonolência decorrente da mudança de horário. Especialistas em ritmos biológicos, chamados de cronobiologistas, têm se manifestado em todo o mundo contra o adiantamento dos relógios provocado pelo início do horário de verão. Imagine alterar o horário exatamente na véspera do principal exame que os adolescentes prestarão. Trata-se de uma medida, no mínimo, desrespeitosa.

O prazo para que o relógio biológico de qualquer pessoa se adapte à mudança de horário é de sete a dez dias. Mas no corpo do adolescente o impacto é brutal — e por diversos motivos. Nessa fase da vida, a necessidade de sono vem, em especial, de uma mudança fundamental no organismo: a puberdade. Tal condição, caracterizada por uma verdadeira revolução hormonal, contribui para alterações comportamentais.

Para ilustrar o que ocorre com o sono dos adolescentes, vou citar os dados inéditos de uma pesquisa divulgada durante a Semana do Sono de 2018, evento realizado pela Associação Brasileira do Sono (ABS) e suas regionais em dez estados. Dos 5 171 questionários aplicados, 1 964 foram respondidos por adolescentes entre 13 e 17 anos. Observamos que eles dormem duas horas a mais nos fins de semana. De segunda a sexta-feira, dias de aula, a média de duração do sono é de seis a sete horas. Aos sábados e domingos, de oito a nove horas. Esse é o chamado efeito sanfona, caracterizado por acordar mais cedo durante a semana e mais tarde no fim de semana. Dormir menos durante a semana é resultado lógico de uma necessidade: estar em sala de aula por volta das 7 da manhã.

Cinquenta e nove por cento dos adolescentes se mostraram insatisfeitos com seus horários de sono durante os dias úteis. Isso não tem absolutamente nada a ver com desleixo ou revolta gratuita, como muitos pensam, mas com o fato de terem de estar na escola tão cedo, com o organismo em pleno estado de vigília, justamente em um momento em que o corpo ainda está predisposto ao sono. Os adolescentes têm o hábito de dormir tarde da noite. Em primeiro lugar, a dificuldade se deve a estarem plugados no smartphone, WhatsApp, Facebook, Instagram e Snapchat, ferramentas que lhes roubam a atenção. Mas de muito pouco adiantaria obrigá-­los a dormir mais cedo. Eles estão fisiologicamente despreparados para isso. No organismo jovem, a produção de melatonina, o hormônio do sono, se dá entre uma e duas horas depois em relação ao mecanismo dos mais velhos. O relógio biológico interno, portanto, é atrasado, tornando mais difícil adormecer antes das 11 da noite.

Ao serem questionados sobre quanto tempo levam para se recuperar depois de uma noite de sono, 33% dos adolescentes (a maioria) falaram em dez a vinte minutos. Uma parcela bastante considerável (17%) relatou precisar de mais de quarenta minutos. Mais de 50% dos entrevistados afirmaram também ter problemas relativos a sono três ou mais vezes por semana, tais como cansaço, dificuldade para iniciar o sono, despertar precoce e sonolência diurna. Metade deles acha difícil e desagradável levantar-se às 6 da manhã, mas muitos precisam levantar-se mais cedo ainda e somente 25% dos adolescentes acordam bem-dispostos.

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A falta de sono pontual já traz risco à saúde dos adolescentes, principalmente os do ensino médio que convivem com horários inadequados na escola. As consequências vão desde sonolência nos primeiros tempos de aula até problemas comportamentais, uso e abuso de drogas, acidentes e baixa imunidade. Em relação à escola, destacam-­se faltas e atrasos, dificuldades de atenção, problemas de memória, concentração e aprendizagem, levando a redução no desempenho escolar. Imagine com a chegada do horário de verão, com uma hora a menos de sono.

Defendemos um projeto de lei que mude o horário inicial das aulas do ensino médio para as 8h30

A privação crônica de sono (que significa dormir seis horas ou menos ao longo de um mês, no mínimo), sabidamente, compromete todos os domínios neurocognitivos: atenção, memórias e funções executivas. Isso porque é durante o sono que consolidamos as memórias, acumulamos energia, produzimos hormônios, amadurecemos o sistema nervoso central e também eliminamos substâncias prejudiciais à mente e ao corpo acumuladas durante o dia. Se dormimos bem uma noite, do ponto de vista de qualidade e quantidade, estamos preparados para viver um novo dia e ávidos por adquirir novos conhecimentos e, se aprendemos durante o dia e temos um sono reparador, aquela informação será armazenada e consolidada. Em outras palavras, precisamos dormir para aprender e dormir para memorizar o que aprendemos.

A falta crônica de sono também aumenta a liberação de cortisol, o hormônio do stress. Com isso, eleva-se o risco de oscilações bruscas de humor, depressão e transtornos de ansiedade. É também durante o sono que o corpo aumenta a liberação de GH, o hormônio do crescimento ósseo e muscular. O risco de obesidade é igualmente maior nos jovens que dormem pouco, pois os hormônios relacionados ao ciclo de fome e saciedade, como a grelina e a leptina, são produzidos durante a noite. A vigília provoca desequilíbrio no metabolismo, levando ao inevitável ganho de peso.

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Por tudo isso, nós, especialistas em sono, membros da ABS, acreditamos que a mudança do horário escolar matutino é indispensável para que nossos adolescentes tenham saúde, bem-estar e um desempenho acadêmico satisfatório. Essa estratégia já vem sendo adotada em vários países. Estudos mostram que tal alteração os fez dormir mais. Por consequência, houve melhora no humor, na fadiga, na sonolência diurna, na assiduidade e no desempenho escolar.

Estamos trabalhando duramente para que um projeto de lei seja apresentado e essa mudança de horário também ocorra no Brasil. Nossa proposta é que as aulas tenham início às 8h30 para alunos na faixa entre 13 e 17 anos ou para os que estão cursando o ensino médio. Sabemos que essa mudança afeta, além dos estudantes e seus pais, professores, funcionários, serviços de transporte e outros, e por isso sugerimos discussões com a comunidade, para avaliar a viabilidade de alteração ou flexibilização dos horários e suas consequências.

* Andrea Bacelar é neurologista e presidente da Associação Brasileira do Sono

Publicado em VEJA de 7 de novembro de 2018, edição nº 2607

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