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Cursos superiores a distância quebram barreiras e incentivam a inclusão

No rastro dos avanços tecnológicos, esses programas atraem hoje mais estudantes que os presenciais

Por Alessandra Kianek Atualizado em 29 fev 2020, 08h44 - Publicado em 28 fev 2020, 06h00

A educação superior no Brasil está no meio de uma revolução — algo silenciosa, é verdade, porém irreversível. O fator dessa transformação que vem mexendo com estudantes, professores e o mercado de trabalho é o ensino a distância (ultimamente popularizado pela sigla EAD).

É essa a modalidade educacional que mais cresce no país. O número de calouros vem aumentando ano a ano, aproximando-se cada vez mais do registrado nas graduações presenciais (em que o aluno vai à faculdade, enquanto no formato que está explodindo ocorre o contrário: é a sala de aula que alcança o universitário onde quer que ele esteja, graças à internet). A estimativa é já tê-lo superado em 2019 (o Ministério da Educação só divulgará os dados oficiais em setembro). Segundo projeções da consultoria Atmã Educar, no ano passado os ingressantes nos cursos de graduação on-line somaram 1,411 milhão, em comparação com 1,203 milhão da modalidade tradicional. Foi a primeira vez que isso aconteceu desde 1996, quando o MEC autorizou o funcionamento dos primeiros cursos de graduação a distância.

 

É consenso entre os especialistas que a virtualização da educação superior representa a solução mais prática para combater os baixos porcentuais de universitários brasileiros. Apenas 21,7% dos jovens de 18 a 24 anos estão cursando hoje uma faculdade — a meta assumida pelo governo em 2014, no Plano Nacional de Educação, era atingir 33% em 2024. Indicadores da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) divulgados em 2019 são ainda mais alarmantes: só 19,6% da população brasileira de 25 a 34 anos possui formação superior, índice inferior ao registrado na Argentina (40%), no Chile (33,7%), na Colômbia (29%) e na média das 36 nações que fazem parte da entidade (44,1%).

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O salto verificado aqui no ensino superior a distância se deve, sobretudo, ao setor privado. Dos 6,4 milhões de estudantes matriculados em alguma instituição universitária paga, 30% estão em cursos on-line. Enquanto a quantidade de alunos presenciais das faculdades privadas vem diminuindo (queda de 3,4% em 2018), na graduação remota o crescimento já alcançou os dois dígitos (aumento de 18,4% naquele mesmo ano). Por outro lado, a participação das universidades públicas nos cursos a distância é modestíssima: apenas 4,9% dos calouros de 2018 ingressaram numa graduação virtual dessas instituições. Parte dessa defasagem pode ser atribuída ao baixo investimento das universidades públicas, que dependem, em sua maioria, do dinheiro do governo federal, liberado por meio do programa Universidade Aberta do Brasil, da Capes — fundação ligada ao MEC. “Os recursos estão sendo cada vez mais contingenciados. Assim, na hora de decidir, as instituições acabam direcionando os investimentos para o ensino no qual têm tradição, o presencial. Ainda existe um certo preconceito em relação ao on-line”, diz Ilka Serra, ex-presidente do Fórum Nacional dos Coordenadores da Universidade Aberta do Brasil.

A única instituição pública nacional de ensino criada exclusivamente para oferecer graduação remota é a Universidade Virtual do Estado de São Paulo, a Univesp (leia depoimento de estudantes dessa e de outras instituições ao longo desta reportagem). A USP, a mais respeitada universidade pública brasileira, não tem cursos próprios de graduação a distância; apenas mantém parceria com a Univesp, cedendo seus professores. O receio das instituições públicas em aderir ao formato é uma política equivocada — que, vale frisar, também atinge parte do setor privado. No mercado de educação, a expectativa é que a partir de 2025 o total de estudantes no ensino superior on-line supere no Brasil o número de matriculados em cursos presenciais, seguindo uma tendência global.

A história dos cursos a distância é longa; aliás, longuíssima. Acredita-­se que a ideia tenha surgido nos Estados Unidos ainda no século XVIII, com a oferta, em Boston, em 1728, de um curso de taquigrafia por correspondência. Por aqui, a modalidade teve início na virada da década de 30 para a de 40, com cursos profissionalizantes, também por correspondência, liderados pelo Instituto Monitor e pelo Instituto Universal Brasileiro. Mais tarde o modelo passou a ser adotado também no ensino oficial. Em fins da década de 70, a modalidade chegou à TV, no formato de telecursos.

Naturalmente, o advento da era digital — que consagrou a web, a tecnologia do streaming e as redes sociais — foi decisivo para o avanço do ensino a distância nos quatro cantos do globo. Mas, no caso do Brasil, pesou sobremaneira a situação do país, em especial nos anos recentes: desemprego em alta, população carente de recursos para custear uma faculdade, escassez de verba estatal para a educação e pequena oferta de vagas em universidades públicas. “Ao permitirem uma melhor escolarização, os cursos remotos ajudam a sanar um dos entraves da economia nacional: a baixa produtividade do trabalhador”, explica João Vianney, sócio da consultoria Hoper Educação. “Com o grave problema da falta de crédito estudantil, o ensino a distância é a solução para quem não tem dinheiro”, completa Ryon Braga, diretor e fundador da Atmã. O preço, de fato, é um inegável atrativo das graduações remotas: as mensalidades custam, em média, um terço do que é cobrado nos cursos presenciais. Segundo as instituições de ensino, as despesas menores com pessoal e espaço físico e o barateamento de soluções tecnológicas fazem com que as aulas virtuais tenham um investimento muito mais baixo para ser realizadas. Além disso, o alcance maior de cada sessão gravada com um professor permite um ganho de escala que não é possível na educação tradicional.

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Em nações com um desenvolvido sistema de ensino a distância, como os Estados Unidos e a Inglaterra, os preços não chegam a ser tão diferentes — em média, são apenas 20% inferiores. Isso ocorre porque nesses países o modelo educacional utilizado comporta uma interatividade maior entre aluno e mestre. Fora o aspecto financeiro, os cursos on-line se tornam atraentes porque abolem a geografia — algo particularmente decisivo em um país com as dimensões do Brasil — e dão margem a uma enorme flexibilidade de horário. Com isso, mais de 70% dos estudantes brasileiros que fazem graduação a distância representam a primeira geração de universitários da família. “Essa modalidade de ensino nasceu para atender alunos de classes menos favorecidas. No entanto, muitas das renomadas instituições nacionais não quiseram ser associadas a esse posicionamento. E, agora que querem entrar no negócio, têm encontrado dificuldade, porque o mercado está tomado pelas grandes empresas, que sabem como oferecer um bom conteúdo”, afirma o especialista em gestão da educação Renato Casagrande.

Pela legislação em vigor, os cursos on-line devem seguir as mesmas diretrizes curriculares dos presenciais, incluindo aulas práticas e estágios. De acordo com o mais recente Censo da Educação Superior, estão registrados no Brasil 3 177 cursos a distância — aumento de 116% em relação a 2015. Só a graduação em medicina não pode ser realizada de maneira remota, e a abertura de cursos de odontologia, psicologia, enfermagem e direito requer autorização prévia do MEC. Conselhos federais da área da saúde já se manifestaram contra a oferta de cursos no formato virtual. Eles acusam as instituições de não atender às exigências de currículo referentes aos conteúdos práticos. Também o curso de direito a distância anda provocando polêmica. A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) entrou, no fim do ano passado, com uma ação na Justiça contra a modalidade, alegando que as diretrizes curriculares não são compatíveis com a formação virtual do aluno. Todavia, especialistas em educação sustentam que o direito é uma das áreas que mais se prestam ao modelo e preveem que o governo facilitará a graduação on-line em direito ainda neste ano.

Pressões contra os cursos a distância são recorrentes — e não há como negar alguns de seus pontos fracos. Um deles é a alta taxa de evasão escolar. Segundo cálculos da Hoper, com base nos dados mais recentes disponíveis do MEC, de cada 100 estudantes que ingressam por aqui numa faculdade presencial, 55 se formam. No ensino virtual esse número cai para 45. O principal fator verificado entre os alunos para a desistência é a não adaptação à modalidade. Nas universidades onde o acompanhamento do estudante é mais constante, a evasão é menor. No ensino a distância, o aluno tem, claro, de estudar muito sozinho. O único contato físico com a instituição na qual se matriculou ocorre por ocasião das provas, que devem ser realizadas presencialmente nos polos educacionais. É neles também que ficam os laboratórios dos cursos que demandam atividades práticas. As instituições que estão conseguindo reter mais estudantes são aquelas que promovem ações de maior interatividade e investem mais no contato entre professor e aluno.

No que diz respeito ao material didático e à qualidade dos cursos remotos, a avaliação corrente no meio educacional é que ambos podem ser considerados satisfatórios. “As notas do Enade (Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes) dos alunos de educação a distância e do modo presencial são praticamente as mesmas nos últimos quatro anos”, afirma Luciano Sathler, membro do comitê de qualidade da Associação Brasileira de Educação a Distância. Ele, no entanto, faz um alerta: “O fato de os conceitos estarem equiparados não significa que estejam bons. As notas ainda são baixas nos dois modelos”. Realmente, as avaliações do Enade demonstram uma lastimável fragilidade da educação superior brasileira. Em 2017, por exemplo, a média alcançada na rede privada pelos estudantes de pedagogia dos cursos presenciais foi de 43,7 pontos (de um total de 100), enquanto a do ensino virtual chegou a 40,1 pontos, segundo dados analisados pela consultoria Hoper. Destaque-se que naquele ano o aluno que obteve a maior nota vinha da modalidade a distância — 96,2 pontos. Em engenharia civil, a diferença de performance foi menor: 41,8 pontos, no caso dos egressos dos cursos presenciais, e 40,7, no dos oriundos do modelo virtual. Significativamente, também nessa prova o maior conceito foi de um estudante de ensino a distância: 89,6 pontos.

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Para que a educação superior on-­line brasileira atinja níveis internacionais, é fundamental que se amplie a integração entre mestre e aluno em pequenos grupos de estudantes. A maioria das instituições dos Estados Unidos voltadas para o ensino a distância faz a diferença justamente pelas chamadas “ferramentas síncronas”, aquelas que permitem que o aluno e o professor participem simultaneamente de uma aula remota, oportunidade em que é possível tirar dúvidas em tempo real. Por ser parecida com uma aula presencial, ela tem a vantagem de aumentar o engajamento dos estudantes — a desvantagem é que estes têm de estar disponíveis naquela hora exata. Outro ponto defendido por educadores para a elevação do padrão dos cursos on-line é a criação de um sistema de supervisão que não se apoie nos mesmos indicadores dos cursos presenciais. “Além de uma ferramenta de acompanhamento que leve em conta a metodologia e os recursos didáticos e pedagógicos, é preciso desenvolver instrumentos de avaliação da qualidade com as devidas especificidades”, opina a socióloga Maria Helena Guimarães de Castro, que foi secretária executiva do MEC e integra o Conselho Nacional de Educação. “O ministério não pode utilizar a mesma ferramenta para avaliar um curso a distância e um presencial. Essa abordagem é equivocada, tendo em vista experiências em outras nações”, pondera ela. Na Inglaterra, para ficar em um só caso, a prestigiosa The Open University desenvolveu técnicas de integração, metodologias de monitoramento e avaliação próprias. Consultado por VEJA, o MEC declarou que “existem normas específicas, respeitando as particularidades e atuação nessa modalidade (de ensino a distância), para garantir a qualidade”. O ministério também revelou que “avalia mudanças no procedimento, para torná-lo mais efetivo e dinâmico”.

O processo para ingressar em um curso a distância é o mesmo do presencial: o vestibular. Cada instituição define como é sua prova. Na Univesp, por exemplo, o teste é realizado em um só dia e é composto de 56 questões e uma redação. Na Universidade Presbiteriana Mackenzie, uma tradicional instituição privada localizada na capital paulista, o concurso consiste somente de uma redação. Algumas instituições aceitam a nota do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) como ingresso oficial ou para oferecer bolsa de estudos. Para muitos acadêmicos que atuam na área da educação, pelo menos o vestibular para a entrada em universidades privadas deve estar com os dias contados. A exceção deverá ser a graduação em medicina e em outras poucas áreas nas quais o número de candidatos continue superando o de vagas.

Uma dúvida que assombra inúmeros estudantes é se o diploma, entregue no fim de um curso realizado remotamente, será bem recebido pelo mercado de trabalho. Um levantamento do Catho, portal de classificados de empregos, realizado no ano passado com 238 recrutadores de todo o país revelou que a discriminação contra egressos de cursos virtuais tem diminuído. Ao serem questionados a respeito da percepção sobre um candidato com curso superior feito na modalidade de ensino a distância, 79% responderam que esse não era um critério de avaliação na hora de recrutar funcionários e 18,9% afirmaram que, sim, tinham preferência por alunos saídos de um curso superior presencial.

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Analisando-se o mercado, é possível considerar que ele seguirá evoluindo até o ponto em que, muito em breve, deixará de se importar com o nome ou a natureza da instituição na qual o profissional que disputa um posto de trabalho se formou para se preocupar com quanto ele absorveu de informação. “O currículo que tem uma faculdade renomada pode chamar mais atenção, entretanto não garante vantagem sobre aquele que traz uma formação universitária em ensino a distância. É a dedicação do profissional que começa a ter maior importância”, diz Renato Trindade, gerente ­executivo da Michael Page, empresa de recrutamento .

A verdade é que a graduação remota está se impondo e é provável que ela comece a exercer influência sobre os cursos presenciais. O futuro da educação superior é o modelo híbrido, aquele em que o presencial se mistura com o virtual. No fim de 2019, o governo já elevou a carga horária permitida de conteúdo on-line nos cursos presenciais de 20% para 40% — exceto para os de medicina. É certo que os elementos virtuais continuarão ganhando, cada vez mais, espaço no processo educacional em todo o planeta e no Brasil, em particular. A educação, enfim, é uma revolução que começa a estar ao alcance de todos — a um só clique de distância.


Junia Regina de Camargo, 21 anos, mora em Elias Fausto (SP) e cursa o 5º semestre de engenharia de computação na Univesp (Jonne Roriz/VEJA)

“Sou a primeira pessoa da minha família a estar perto de concluir um curso superior — muitos dos meus parentes estudaram só até a 4ª série. Não tínhamos condição financeira de pagar faculdade nem de custear moradia fora da cidade, e, por isso, escolhi a universidade pública virtual. Quando passei no vestibular, não tinha computador. Estudava no polo da escola e em lan houses. Até que ganhei um de uma amiga da família. Adaptar-me à modalidade foi fácil, porque sempre gostei de estudar sozinha, mas exige disciplina e foco. Sonho tornar-me perita criminal, para lidar com o crime cibernético. Neste ano tive uma vitória: estimulei meu pai, que é guarda municipal, a fazer o vestibular na minha universidade. Ele passou. Vai cursar licenciatura em matemática.”

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Lucia Pereira, 55 anos, reside em São Paulo (SP) e é graduada em gastronomia pela Cruzeiro do Sul (Jonne Roriz/VEJA)

 

“Desde pequena, eu adorava ver meu pai, imigrante português, cozinhando, salteando os alimentos. Como antigamente não existia gastronomia, acabei me formando em economia, no modo presencial, em 1981. Os sonhos, como se sabe, não envelhecem, e, em 2017, comecei a procurar uma universidade. As presenciais não me agradavam, porque eu via muitos alunos em volta de uma mesa, divididos em tarefas, para preparar um único prato. Achei que talvez não tivesse um aprendizado eficiente e procurei o ensino a distância. Fazer tudo sozinha me deu segurança. Os vídeos eram explicativos, e eu podia revê-los quantas vezes quisesse. Tive a oportunidade de realizar estágios em vários restaurantes, e hoje sou chef de cozinha em um bistrô. Com muito orgulho.”


João Carlos de Souza, 43 anos, mora em Brasília (DF) e fez licenciatura em pedagogia na Unyleya (Cristiano Mariz/VEJA)

“Eu tinha uma empresa de cursos profissionalizantes, porém a crise econômica de 2014 me obrigou a fechá-la. Fui convencido por minha esposa, que é professora, a fazer um curso superior. Aqui em Brasília o mercado é bom. A escolha do ensino a distância se deu apenas pela idade e pela falta de tempo. Sempre tive receio da modalidade, pensava que poderia ser inferior, mas, na comparação com o curso presencial da minha mulher, achei bem melhor. Em 2018, prestei concurso para professor temporário e fui um dos primeiros colocados. Meu plano é fazer a segunda graduação, a distância, em história. Comecei por pedagogia pela necessidade e acabei me encontrando na educação. É muito prazeroso trabalhar com crianças.”

Publicado em VEJA de 4 de março de 2020, edição nº 2676

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