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Canais no YouTube ensinam os opostos da política a conversar

Uma proposta sob medida para estes tempos de debate ultrapolarizado: ensinar gente que discorda a trocar ideias

Por Maria Clara Vieira Atualizado em 28 fev 2020, 16h38 - Publicado em 14 fev 2020, 06h00

Que jogue a primeira pedra (ou melhor: que a recolha e ponha no bolso) o indivíduo que, nestes últimos dois ou três anos, não ergueu a voz para algum parente igualmente exaltado em uma discussão política à mesa de jantar, não excluiu um tio bolsonarista ou primo “vermelho” do Facebook ou, no extremo oposto, não proibiu terminantemente que se toque nesses assuntos na sua frente. E as perspectivas de paz não são boas: vêm aí as eleições municipais, com nova carga de radicalização na veia. Para que as pessoas se previnam contra mais uma rodada de rupturas familiares e gelo entre amigos, entidades civis e canais do YouTube estão se dedicando a propagar e ensinar maneiras de conduzir uma boa conversa — com direito a manual de instruções —, na cola de iniciativas já consolidadas nos Estados Unidos. “É importante lembrar que falar em diálogo não significa superar divergências. Independentemente do seu time, sempre dá para melhorar o nível do campeonato”, expli­ca Ricardo Borges Martins, coordenador executivo de um desses grupos, o Pacto pela Democracia.

O Pacto vai lançar neste ano, com outros órgãos afins, uma campanha para organizar encontros nos municípios brasileiros com o objetivo explícito de promover debates sem baixaria entre diferentes espectros ideológicos. “Em 2019, juntamos integrantes do Novo e do PSOL em conversas sadias sobre temas im­portantes para o país”, diz Martins. Os bate-papos, batizados de Diálogos Democráticos, transcorreram em auditórios de São Paulo, na mais santa paz. Outro projeto, o Despolarize, lançado no ano passado pelo advogado paulista Rafael Poço, com apoio do Politize, oferece cartilhas com dicas de como não perder as estribeiras em discussões delicadas e ainda um didático baralho dividido por cores — o amarelo tem estratégias para desfazer pequenos ruídos, o vermelho é para situações de descontrole —, com a finalidade de abrandar a fervura (veja o quadro). “Zelar pelas relações em família ou entre amigos não é uma apelação moralista, mas um aspecto prático da sobrevivência em grupo”, destaca Poço, que aplicou as técnicas que prega em conversas com o pai, com quem tem “divergências profundas”.

No universo do YouTube, dado a escândalos e bizarrices, vários canais que já empunharam bandeiras com estardalhaço agora investem em conteúdo que ensine a divergir sem socar a mesa. Vê-se aí certo tom de mea-culpa: um estudo recente da Universidade Federal de Minas Gerais constatou que o mesmo YouTube é fator de radicalização dos usuários ao expô-­los à ideologia da extrema direita, o que começa com vídeos inofensivos e descamba para o acesso a páginas cada vez mais violentas. Indo contra essa corrente, o Quebrando o Tabu exibe o programa Fura Bolha, feito com apoio da Plataforma Democrática, da Fundação FHC. No quadro, políticos e especialistas de diferentes lados são postos a conversar diante das câmeras. “A expectativa de briga é sempre maior do que a realidade. Frente a frente, são pessoas normais, fazem piada”, diz o sócio-fundador do canal, Guilherme Melles. Os participantes sorteiam perguntas sobre temas variados, entre eles séries e filmes, e, nas respostas, são induzidos a buscar opiniões em comum.

Convidados, os deputados federais Marcelo Freixo (PSOL) e Janaina Paschoal (PSL), radicais cada qual no seu quadrado, trocaram ideias com civilidade e, no final, rasgaram seda. Ela sobre ele: “Essa capacidade de exaltar o lado humano eu realmente admiro”. Ele sobre ela: “É uma pessoa de opinião e tem grande capacidade para o diálogo”. No dia seguinte, Freixo apareceu entre os assuntos mais comentados no Twitter justamente por causa das duras críticas que recebeu da esquerda por ter conversado com a advo­gada do impeachment de Dilma Rousseff. “Esse caso ilustra bem como o problema está menos nos representantes e mais nos representados”, avalia Melles.

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Outro canal youtubiano, o Spotniks, com quase 1 milhão de seguidores, promove atrações variadas para suavizar radicalizações. “Fizemos um vídeo sobre a marcha da maconha mostrando gente comum que participou. Nos comentários, muitos se disseram admirados de ver pessoas parecidas com a mãe e os avós lá”, conta o editor Rodrigo da Silva. Em um cenário que reúne Marx, Mao, Lincoln e Trump, o canal também põe cara a cara desconhecidos discordantes, sem que eles saibam disso — e um tenta adivinhar os gostos do outro, buscando pontos em comum. Já participaram do quadro uma garota de programa e um pastor, um funkeiro e um maestro e, claro, um eleitor de Lula e um de Bolsonaro. Às vezes, a discussão descamba: uma gravação na rua com uma apoiadora do governo quase acabou em violência.

Os fundamentos morais por trás da esquerda e da direita já foram explorados pela ciência. O psicólogo americano Jonathan Haidt, da Universidade de Nova York, ganhou notoriedade há dez anos ao mapear os valores que determinam a forma como as pessoas votam: justiça e compaixão movem os mais liberais, lealdade e autoridade são valorizados pelos conservadores. Estudos mais recentes, entretanto, mostram o que basta olhar em volta para perceber: a esmagadora maioria fica no meio. A polarização vem à tona quando crenças fundamentais são contestadas. “Um bom começo é não fazer com que a outra pessoa se sinta má ou burra por dizer o que pensa. É fundamental ter em mente o que o outro valoriza”, ensina a psicóloga Debra Mashek, presidente da Heterodox Academy — uma das mais proeminentes iniciativas dos Estados Unidos na luta contra a polarização. E, por favor, sem brigas.

Publicado em VEJA de 19 de fevereiro de 2020, edição nº 2674

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