Participei de um seminário internacional durante a gestão do PT. O representante do MEC declarou que o ensino básico havia sido privatizado. Perguntei como isso era possível se, ao longo das últimas décadas, tinha aumentado a proporção de matrículas em escolas públicas. A resposta veio fulminante: fora privatizada a cabeça dos professores.
Examinemos as querelas acerca da “privatização” das universidades federais, sabendo que o termo é turvo e ambíguo. O que significa, na cabeça de cada um?
Para muitos, privatizar é aproximar-se do setor privado. Pode ser um direcionamento do ensino e da pesquisa para os interesses das empresas. Eficiência, produtividade e qualidade são os mantras desse catecismo, que inclui regras internas mais flexíveis e que se aproximam daquelas vigentes no mundo empresarial. Operações como comprar, vender, contratar e fazer parcerias deveriam ser mais fáceis. Igualmente, preconiza-se a cobrança — seletiva — de taxas e anuidades para cursar certos programas. Há quem chame essa linha de “capitalismo acadêmico”. Contudo, por ser ideologicamente carregado, o termo mais atrapalha que ajuda.
Há outra categoria de privatização, por alguns chamada de patrimonialismo. É a apropriação privada, pelos servidores públicos, de benesses e vantagens por estar dentro da máquina governamental. Podem ser os automóveis dos dirigentes (o primeiro-ministro britânico não tem carro oficial). Podem ser os empregos dos amiguinhos e correligionários — que aumentam o poder interno dos dirigentes e a lealdade do grupo. Ou a manipulação dos concursos e seleções, defenestrando o mérito e fortalecendo os aliados. Ou a multiplicação dos programas de apoio a isso ou aquilo, resultando, quase sempre, no inchaço dos fregueses das tetas do governo. No limite do legal (ou além) estão os contratos vantajosos para os companheiros.
“Os debates são improdutivos quando coloridos por uma ideologia espessa. Trocam-se impropérios”
Em uma análise tão fria quanto consigo, mover-se em direção à primeira categoria aproxima nossas universidades daquelas do Primeiro Mundo — tão admiradas. Se os graduados vão trabalhar nas empresas, é bom que sejam corretamente preparados. Qualidade, meritocracia, eficiência e regras flexíveis são também desejáveis. Mas, é claro, pode haver exageros e equívocos. Por exemplo, desvalorizar as humanidades e esquecer equidade não constrói universidades de primeira linha.
A segunda categoria reproduz os cacoetes de sociedades atrasadas. É difícil justificá-los. Mas revelam-se teimosamente estáveis. Não será surpresa afirmar que os grupos bem instalados no poder sejam prudentemente silenciosos diante do patrimonialismo. E como aconteceu nos últimos anos, por serem de esquerda, amaldiçoem tudo que aproxima as universidades das empresas ou que cheire a mercado ou meritocracia.
É uma boa hora para repensar nossas universidades públicas. Mas os debates são improdutivos quando coloridos por uma ideologia espessa. No ardor da batalha, apenas se trocam impropérios, infinitamente. Não se faz boa política educativa sem um escrupuloso respeito pelo que diz o mundo real, revelado pelas pesquisas sérias.
Publicado em VEJA de 21 de agosto de 2019, edição nº 2648