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O leão gordo e a jaguatirica magra: o sistema tributário, segundo Hauly

Ex-deputado idealizador de reforma tributária no Senado, Luiz Carlos Hauly diz que proposta do governo não resolve problemas de impostos do país

Por Victor Irajá 27 set 2020, 08h30

O ex-deputado Luiz Carlos Hauly não descansa nem em conversas privadas. Idealizador da Proposta de Emenda Constitucional 110, reforma tributária que tramita no Senado, o economista cumprimenta seus pares em grupos de WhatsApp com “abraços reformistas”. Crítico de cobranças nos moldes da CPMF, como deseja o ministério da Economia, Hauly diz que a principal falha do sistema tributário brasileiro está na incidência das tarifas sobre o cidadão, por meio de impostos em consumo e serviços. Sobre as dificuldades de se emplacar alterações concisas, o ex-deputado as atribui, nesta entrevista a VEJA, aos grupos de pressão, que censuram o assunto. Ele também ataca a autonomia legislativa de estados e municípios. Defensor de uma cobrança eletrônica, ele defende uma lei única para a base de consumo, vista como a solução para as renúncias fiscais e a sonegação de impostos.

Qual a necessidade de uma reforma tributária no país? A empresa Brasil está falida. O governo federal, estados e municípios, mais da metade das empresas e cerca de 70% dos cidadãos estão inadimplentes. Essa falência tem origem no baixo crescimento, um histórico de recessões contínuas nos últimos 40 anos. Temos duas safras agrícolas, somos o maior exportador de commodities, temos o quinto maior território e o oitavo maior PIB do mundo. O que acontece que não conseguimos destravar o crescimento? O problema não é de arrecadação nem de despesa pública, tampouco de recursos humanos. O problema está na formação do preço do país, como formamos preço de uma saca de soja e lata de óleo, por exemplo, ou de uma vassoura ou do avião da Embraer. O que interfere é a falta de competitividade interna no país, de quase nenhum produto, a não ser os oriundos do agronegócio, exportados. Nenhum país exporta impostos.

Qual a origem dos problemas tributários do país? Está na origem do sistema. Em 1965, criamos um problema congênito: quando a Europa, na década de 1950 e 1960, adotava um modelo de IVA, o Brasil se antecipou para criar um modelo hibrido. Foi dado ao município a cobrança da base de consumo, uma das três bases clássicas de qualquer literatura tributária. O IBGE calcula que existem mais de 1 milhão de bens e serviços tributados no país hoje, desde quem conserta a geladeira até o chiclete que compramos. Os salários, alugueis e juros, dividendos são a segunda base. E o último, o patrimônio, como veículos, e as transações. O problema é que municípios e estados são muito suscetíveis a pressões locais, das assembleias legislativas e câmaras de vereadores. A autonomia é muito alta. Os grupos de pressão têm ingerência nesses entes, e assim começou a guerra fiscal.

Por quê? A União é um leão vistoso e gordo; os estados e municípios, por suas vezes, jaguatiricas magérrimas. Os entes federativos morderam um pedaço das arrecadações em serviços e combustíveis, por exemplo, mas vimos como a União foi à forra. Em vez de fazer uma reforma tributária estruturante, criou contribuições previdenciárias para uso da seguridade, para investir em saúde, previdência e seguridade social. O problema é que isso fez aumentar a carga tributária, mas nem um centavo foi destinado para estados e municípios, que foram colocados de joelhos. A União retirou o direito dos estados e municípios a emitirem títulos, fez de tudo para acabar com os bancos estaduais. Para eles, só sobrou como alternativa a guerra fiscal.

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E qual a solução para o sistema? O Brasil tem hoje metade da arrecadação oriunda do consumo, enquanto nos países da OCDE, isso gira em torno de 30% e nos Estados Unidos, 17%. Falhamos em tributar renda, já que, no Brasil ela representa apenas 21% de toda a arrecadação, enquanto nos Estados Unidos essa base é de 50% e na OCDE, de 34%. O país arrecada mal. Os americanos tributam mais os que ganham mais, e vice-versa, o que não acontece no Brasil. Quando se tributa consumo, isso incide sobre o preço. As famílias que ganham mal acabam recebendo toda a carga, direta e indiretamente. O consumidor final brasileiro que ganha até dois salários mínimos tem carga tributária de mais de 53%. Quem ganha acima de 30 salários, é incidido em 29%. Ora, a família de baixa renda é esmagada. Matamos o consumidor e o eleitor, tirando o poder de compra. Por isso, o nosso mercado consumidor é ridículo.

E os incentivos fiscais, não contemplam os menos favorecidos? Os programas idealizados no governo Lula para liberar crédito consignado levaram as famílias às lojas de departamento, pagando 400% de juros do cheque especial e do cartão de crédito. Resultado disso: mais de 60% das famílias estão endividadas. Esse sistema tributário, de tantas exceções, faz o governo oferecer renúncias legais de mais de 4% do PIB. É um Frankenstein funcional, que vai matando o poder de consumo e a competitividade das empresas. Todas as renúncias, os incentivos fiscais, estão nos preços das mercadorias. Esse modelo é declaratório. Eu, meu contador e advogado decidimos qual o tamanho do boleto. Chega no dia de pagar, não tenho dinheiro e tenho que pagar a folha de pagamentos. Resultado: a dívida aumenta. Isso sem contar o custo da burocracia, e aqueles que sonegam. O PIB paralelo, informal, chega a 25% do tamanho de tudo que é produzido no país. O sistema mata as empresas, principalmente as que não têm incentivo. E o empresário, é claro, vai à Justiça, espera um Refis (programa de refinanciamento das dívidas com o governo), não paga o imposto.

Como avalia a proposta de unificação do PIS-Cofins e a CPMF, desejadas pelo governo federal? O paciente Brasil tem obesidade mórbida na base do consumo e tem oito cânceres tributários. Não adianta eliminar dois, como quer o governo, ou cinco, como quer o Bernard Appy [idealizador da PEC 45, que tramita na Câmara]. Se deixarmos algum tributo para trás, a União vai fazer o mesmo que fez nestes 30 anos. Conheço a natureza do tecnocrata, que quer servir ao Estado. Já existe o excesso de tributação em consumo. Entre o imposto sobre transação e a nossa proposta, fico com o modelo de transação eletrônica.

E as propostas que envolviam o fim das desonerações de gastos com saúde e educação? Quando ficamos doentes, queremos ir ao hospital Albert Einstein ou ao Sírio Libanês. Se você não pode, faz qualquer tratamento, até de benzedeira. Nossa proposta muda a incidência, o tratamento é benevolente a medicamentos e alimentação. Não tenho como comparar o nosso modelo, tão superior, com qualquer outra proposta.

Qual é a maior dificuldade para se fazer uma reforma tributária ampla? Mesmo nessa situação caótica da economia, degenerativa e declinante, tem muita gente ganhando dinheiro. Mesmo com a miséria, a manutenção do status quo interessa. Existem seguimentos cativos de consumo. Na pandemia, por exemplo, os setores de alimentos e remédios amargaram inflação de demanda, e o governo não entrou corrigindo isso. Aquele que está confortável, com alíquota baixa, fica quieto. Aqueles que vivem do contencioso também. Quantos não estão ganhando dinheiro? Quem defende a manutenção deste cenário não está interessado em salvar o Brasil. O sistema é devorador de empregos e de esperança. Poderíamos ter aeroportos, estradas e afins no nível de países europeus, mas o modelo fracassou. A despesa pública é derivada do nosso sistema, mas viramos vítima. O próprio governo é vítima desses grupos de pressão, porque é o maior consumidor de bens.

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