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Números oficiais não mostram situação precária do mercado de trabalho do Brasil

Estatísticas festejadas pelo governo incluem na conta a enorme quantidade de pessoas subocupadas e excluem dela milhões que vivem do Bolsa Família

Por Márcio Juliboni Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO , Carolina Ferraz Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO , Felipe Erlich Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO , Ernesto Neves Atualizado em 5 dez 2025, 11h21 - Publicado em 5 dez 2025, 06h00

Nos últimos meses, ganhou força a percepção de que o Brasil vive uma situação de pleno emprego, como se quem não estivesse trabalhando apenas aguardasse a vaga dos sonhos e pudesse se dar ao luxo de procurar por mais tempo. À primeira vista, há argumentos que sustentam essa leitura. De um lado, multiplicam-se os relatos de empresas com dificuldades para contratar. De outro, os dados mais recentes do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostram que, no trimestre encerrado em outubro, a taxa de desocupação foi de 5,4%, a menor da série histórica, o que significa 5,9 milhões de pessoas sem trabalho diante de 102,6 milhões ocupadas de algum modo. Ávido por boas notícias que impulsionem sua popularidade e suas chances de reeleição em 2026, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva correu às redes sociais para comemorar o feito, atribuindo o resultado ao “trabalho sério do governo” e ao “esforço e dedicação do povo trabalhador”. Os fatores que explicam por que o desemprego parece tão baixo, porém, revelam um quadro bem mais complexo, complicado e difícil de comemorar — em que o subemprego e a generosidade dos programas sociais distorcem os números, ajudando a sustentar a ufanista narrativa oficial.

CAROLAINE JATOBÁ, 22 ANOS - A vendedora de bijuterias no Rio de Janeiro diz que as empresas pagam pouco para quem está começando a trabalhar. Por isso, acha melhor ganhar a vida como camelô, o que oferece maior liberdade. “Estou concluindo o curso de administração numa faculdade particular e minha meta é abrir uma loja própria”, afirma. Nos dados do IBGE, Jatobá está empregada.
CAROLAINE JATOBÁ, 22 ANOS – A vendedora de bijuterias no Rio de Janeiro diz que as empresas pagam pouco para quem está começando a trabalhar. Por isso, acha melhor ganhar a vida como camelô, o que oferece maior liberdade. “Estou concluindo o curso de administração numa faculdade particular e minha meta é abrir uma loja própria”, afirma. Nos dados do IBGE, Jatobá está empregada. (Paulo Mumia/.)

Segundo uma frase espirituosa (talvez hoje um tanto quanto politicamente incorreta) do economista e ex-ministro do Planejamento Roberto Campos (1917-2001), “as estatísticas são como biquíni: o que revelam é interessante, mas o que ocultam é essencial”. Essa citação pode se aplicar ao índice do desemprego no país. Historicamente, segundo muitos especialistas, ele nunca refletiu a realidade do mercado de trabalho por uma questão metodológica. “O IBGE segue padrões mundiais estabelecidos pela Organização Internacional do Trabalho”, diz José Pastore, um dos maiores especialistas brasileiros no tema. “Quase todo mundo os adota.” A OIT é um braço da ONU e reúne 187 países-membros que, em conferências, definem os conceitos e métodos usados nas pesquisas de emprego ao redor do mundo.

MICHEL SANTOS, 47 ANOS - Depois de trabalhar cinco anos como balconista, Santos foi demitido e nunca mais conseguiu dar expediente em regime CLT. Vive apenas de bicos, como fazer anúncios de compra e venda de ouro nas ruas do Rio de Janeiro. “Meu sonho é voltar a ter carteira assinada”, diz. Apesar da informalidade e da renda instável, entra para a estatística do pleno emprego.
MICHEL SANTOS, 47 ANOS – Depois de trabalhar cinco anos como balconista, Santos foi demitido e nunca mais conseguiu dar expediente em regime CLT. Vive apenas de bicos, como fazer anúncios de compra e venda de ouro nas ruas do Rio de Janeiro. “Meu sonho é voltar a ter carteira assinada”, diz. Apesar da informalidade e da renda instável, entra para a estatística do pleno emprego. (Paulo Mumia/.)

Isso, porém, não torna esses critérios imunes a críticas. A começar pela própria definição de “ocupado”, bastante ampla: basta ter realizado alguma atividade geradora de renda por ao menos uma hora na semana anterior à pesquisa — muito aquém da jornada de 44 horas prevista na legislação brasileira. Além disso, para a OIT, essa renda pode ser paga em dinheiro, bens, produtos ou qualquer tipo de benefício. Na prática, alguém que limpou a calçada do vizinho em troca de um prato de comida entra na estatística como ocupado. Na outra ponta, a OIT só recomenda computar como desempregado os que seguem em busca ativa por alguma vaga, enviando currículos para empresas, por exemplo. “A taxa de desocupação trata apenas da quantidade de empregos criados, mas não diz nada sobre a qualidade deles”, reconhece Vinícius Pinheiro, diretor da OIT no Brasil. “Para isso, é preciso avaliar outros indicadores.”

No caso nacional, uma análise mais aprofundada revela que há dois problemas que ajudam a inflar o índice. Como a OIT recomenda computar como empregado qualquer cidadão que tenha exercido alguma atividade em um período recente, as pessoas subocupadas acabam sendo computadas nos índices de todos os países. Dentro desse critério, são consideradas empregadas no Brasil pessoas como Michel Santos, que sobrevive no Rio dando expediente como homem-­placa (leia as histórias desse e de outros personagens em situação semelhante na galeria de fotos na abertura desta reportagem). Ocorre que, por aqui, a proporção de subempregos é maior do que a média registrada nas maiores economias do planeta: 16%. A título de comparação, nos Estados Unidos o índice é de 8% e, no México, 9%. Outra evidente distorção é o Bolsa Família. Para o IBGE, alguns milhões de beneficiários não se enquadram como desempregados, pois embolsam a ajuda e não comparecem a entrevistas nem se cadastram em sites de empregos. Segundo os cálculos de José Márcio Camargo, economista-chefe da Genial Investimentos, se fossem incluídos na conta os milhões de subocupados e o enorme contingente que sobrevive apenas com a renda do Bolsa Família, o desemprego seria hoje de 15,6% — o triplo da taxa oficial.

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CAMPANHA - Lula e Haddad: desemprego menor reforça o discurso oficial de melhora da economia
CAMPANHA - Lula e Haddad: desemprego menor reforça o discurso oficial de melhora da economia (Sebastiao Moreira/EFE)

A era do “pleno emprego”, que vem sendo alardeado pelo governo Lula, ocorre justamente no momento em que encolhe o número total de pessoas ocupadas. De 2024 até outubro deste ano, a força de trabalho recuou 2%, de 110,7 milhões para 108,5 milhões de pessoas. Parte dessa queda se explica pela redução de 0,7% no contingente de ocupados, que passou de 103,3 milhões para 102,6 milhões. Já o total de desempregados declinou 20%, de 7,4 milhões para 5,9 milhões. Assim se chega aos 5,4% de taxa de desemprego que estampou as manchetes como a menor da história: há menos gente procurando trabalho em um mercado que, na prática, também encolheu. Esses números abrem uma série de questões. A mais óbvia: como o número de desempregados encolheu em 1,5 milhão ao longo do ano se, no mesmo período, o total de pessoas ocupadas diminuiu em 700 000?

A hipótese mais provável é que parte deles parou de buscar uma vaga. Mas por que alguém faria isso? Porque espera que seu sustento seja garantido por outros meios, como os programas assistenciais do governo. Para os estudiosos do tema, a responsabilidade por anabolizar a ajuda social, desestimulando a busca de emprego, é suprapartidária. Em 2003, quando foi criado, o Bolsa Família pagava em média 79 reais por família, o equivalente a 32% do salário mínimo da época. Em 2019, no primeiro ano do governo Bolsonaro, o valor era de 190 reais. Nessas condições, o programa servia como um complemento de renda e os contemplados não podiam abandonar o mercado de trabalho. A situação mudou no fim de 2020, quando Bolsonaro relançou o programa como Auxílio Brasil, com valor de 400 reais. Em agosto de 2022, o ex-capitão voltou à carga e aumentou o benefício para 600 reais. Além disso, em apenas dez meses, incorporou mais de 7 milhões de famílias ao programa. O retorno de Lula ao Planalto marcou o resgate do Bolsa Família. Embora o petista tenha cortado para 18,7 milhões o número de assistidos, elevou o valor médio para 670 reais.

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ILUSÃO - Pochmann: em 1997, ele criticou os métodos do IBGE, que hoje preside
ILUSÃO - Pochmann: em 1997, ele criticou os métodos do IBGE, que hoje preside (Lucas Lacaz Ruiz/Fotoarena/.)

Estudos recentes ajudam a medir os efeitos negativos do crescimento da distribuição do Bolsa Família sobre o mercado de trabalho. Um deles, feito por Daniel Duque, pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (Ibre/FGV), mostra que a proporção de brasileiros em idade ativa que seguem na força de trabalho encolheu após a ampliação dos benefícios sociais a partir de 2020. No último trimestre de 2019, a força de trabalho representava 63,6% do total de pessoas em idade para trabalhar. Com os aumentos dos benefícios de 2020 em diante, essa fatia recuou para 62,2%. “É claro que há um efeito do Bolsa Família”, diz Duque. O fenômeno é mais evidente entre homens jovens das regiões Norte e Nordeste, que, diante de um benefício equivalente a 35% da renda média do país, ficam mais propensos a abandonar a busca por emprego, já que, com baixa qualificação, tenderiam a receber salários próximos desse valor.

A construção civil, um dos setores que mais absorvem mão de obra pouco qualificada, ilustra bem a dificuldade criada pelo Bolsa Família. Um exemplo é a Moura Dubeux, uma das maiores incorporadoras de imóveis do Nordeste, região com alta dependência de programas assistenciais. “Muita gente prefere ficar na informalidade para não perder o benefício”, diz Diego Villar, executivo-chefe da companhia. “Quando a indústria mais precisa de mão de obra, o governo despeja mais assistencialismo.” Os empresários brasileiros não são os únicos a apontar os riscos do assistencialismo. No México, onde o principal programa social paga até dois salários mínimos aos beneficiados, uma pesquisa da consultoria ManpowerGroup mostrou que, em algumas regiões, 70% das empresas enfrentam problemas para contratar funcionários.

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Outro estudo foi realizado por José Márcio Camargo, economista-chefe da corretora Genial Investimentos. Camargo concluiu que as políticas de transferência de renda vitaminadas por Lula e Bolsonaro reduziram artificialmente a taxa de desemprego em 1,7 ponto na comparação com o período anterior à pandemia de covid-19. Na prática, isso significa que, se o Bolsa Família permanecesse nos níveis de 2019, a taxa de desemprego seria de 7,1%. “Esses programas tendem a desestimular a busca por trabalho”, diz Camargo. “A menor oferta de mão de obra reduz o crescimento potencial da própria economia.”

DESPRESTÍGIO - Carteira de trabalho: emprego formal em baixa
DESPRESTÍGIO - Carteira de trabalho: emprego formal em baixa (FG Trade/Getty Images)

Pessoas mal qualificadas trocam os baixos salários que receberiam no mercado formal por bicos e pela ajuda do governo. Essa bola de neve já arrastou 40 milhões de brasileiros para trabalhos precários e informais, segundo o IBGE. “A situação é ampliada pelas plataformas digitais como o Uber e o iFood, que oferecem formas mais flexíveis de trabalho”, diz Maílson da Nóbrega, ex-ministro da Fazenda e colunista de VEJA. “Para superar o subemprego, o Brasil deve investir em educação e reduzir os encargos trabalhistas.”

A informalidade contribui ainda para outra distorção: o grande número de pessoas que trabalham menos horas do que precisam para pagar as contas. A chamada subocupação por insuficiência de horas atingiu 4,6 milhões de indivíduos em outubro, em linha com o registrado ao longo do ano. Isso revela a dificuldade do país de gerar postos de trabalho de boa qualidade. Não se deve esquecer também do desemprego velado, expresso pela chamada “força de trabalho potencial”, que abarca quem gostaria de procurar um emprego, mas não pode. É o caso das mães que querem trabalhar, mas não têm com quem deixar os filhos pequenos. Como, a rigor, tais pessoas não procuraram uma vaga no mês anterior à pesquisa do IBGE, são catalogadas como “fora do mercado de trabalho”. Trata-se de um grupo nada desprezível de 5,3 milhões de cidadãos, quase do mesmo tamanho dos declaradamente desempregados.

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DISTORÇÃO - Cartão do Bolsa Família: o programa reduziu artificialmente o desemprego
DISTORÇÃO - Cartão do Bolsa Família: o programa reduziu artificialmente o desemprego (Lyon Santos/MDS/.)

As várias formas de subemprego e a força de trabalho potencial formam, junto com a taxa de desemprego, o que os especialistas chamam de taxa de subutilização. Concebido como um retrato mais preciso do mercado, esse indicador evidencia o fosso entre o propagandeado pleno emprego e a realidade: em outubro, 15,8 milhões de brasileiros enfrentavam dificuldades que iam do desemprego à informalidade, passando por subempregos e pela impossibilidade de procurar uma vaga, mesmo quando precisam trabalhar. Com isso, a taxa de subutilização chegou a preocupantes 13,9%. Quando se leva em conta que, segundo o estudo de Camargo, o Bolsa Família reduziu artificialmente a taxa de desemprego em 1,7 ponto percentual, o quadro muda de tamanho.

arte desemprego

Procurado por VEJA para falar dos números oficiais de desemprego e da precariedade do mercado de trabalho no país, Marcio Pochmann, presidente do IBGE e fiel escudeiro de Lula, não retornou os pedidos de entrevista. Não é por falta de conhecimento que ele não toca no assunto. Em 1997, quando lecionava na Unicamp, publicou um artigo na Folha de S.Paulo em que criticava duramente os “restritos parâmetros metodológicos” adotados por “místicos da liturgia liberal” para fabricar baixas taxas de desemprego. Já naquela época, Pochmann observava que bastava uma hora de trabalho para que alguém fosse tido como empregado, e aqueles que não procurassem uma vaga por uma semana eram excluídos dos desempregados. “Os mercadores de ilusão talvez devessem refletir mais e melhor sobre as realidades do mercado de trabalho no Brasil”, escreveu na ocasião. Talvez esteja na hora de o Brasil trocar a euforia com o “pleno emprego” das estatísticas pela coragem de encarar, sem retoques, a precariedade real do trabalho que sustenta o país.

Publicado em VEJA de 5 de dezembro de 2025, edição nº 2973

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