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Pressionada entre duas guerras, Petrobras se encontra novamente sob risco

A empresa está acuada pela crise deflagrada com a invasão da Ucrânia e pela ameaça de intervenção política

Por Felipe Mendes, Luana Zanobia, Victor Irajá Atualizado em 11 mar 2022, 10h27 - Publicado em 11 mar 2022, 06h00

Diante de uma plateia de mais de 1 000 executivos do setor petrolífero reunidos na cidade de Houston, no Texas, o nigeriano Mohammad Bar­kin­do, secretário-geral da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep), aproveitou-se da visibilidade que recebia para lançar um discurso soturno. Com ar preocupado, declarou que, nos pouco mais de sessenta anos de existência da entidade, ocorreram sete episódios de crise que lançaram o mundo em verdadeiros sobressaltos. E acrescentou que, com a guerra na Ucrânia, abre-se uma janela para que um novo cataclismo dessa ordem produza mais uma catástrofe econômica. O posicionamento de Barkindo se deu na terça-feira 8, pouco depois de o presidente americano, Joe Biden, anunciar o bloqueio das importações para os Estados Unidos de petróleo e derivados produzidos na Rússia.

Além de fechar as portas de seu país, o americano defendeu a adoção de medida semelhante por seus aliados, em que acabou seguido apenas por Boris Johnson, o primeiro-ministro do Reino Unido. Assim como aconteceu na conferência de petroleiros em Houston, a decisão de Biden enviou ondas de choque para os quatro cantos do planeta e, obviamente, atingiu o Brasil. Por aqui, a maior empresa do país, a Petrobras, se tornou o alvo direto desse abalo. E pior: não bastasse a crise vinda de fora, o solavanco acontece em um momento em que a companhia enfrenta uma situação delicada, acuada em meio à disputa eleitoral que a aponta como responsável pela disparada dos preços dos combustíveis no Brasil.

BLOQUEIO - Biden: o anúncio de que os Estados Unidos não vão importar petróleo russo levou a cotação às alturas -
BLOQUEIO – Biden: o anúncio de que os Estados Unidos não vão importar petróleo russo levou a cotação às alturas – (Win Macnamee/Getty Images/AFP)

Nesse cenário, a Petrobras, hoje uma empresa de capital misto — de controle estatal, mas com milhões de investidores individuais —, se viu transformada em território conflagrado entre duas guerras. A primeira delas, a milhares de quilômetros de distância, tem causado impactos globais que fizeram disparar o preço do petróleo do tipo brent à cotação acima de 130 dólares, um patamar que não era visto desde 2008, quando se atingiu a marca histórica de 146 dólares. O segundo embate é muito mais próximo e conhecido dos brasileiros. O governo de Jair Bolsonaro trouxe de volta a discussão e torna cada dia mais palpável a possibilidade de uma intervenção política na empresa, algo malvisto pelo mercado financeiro e que costuma trazer impactos de longo prazo bastante prejudiciais à companhia e ao país, dada sua relevância para a economia. Bolsonaro nunca escondeu seu incômodo com a política de preços da Petrobras, baseada nas cotações do mercado internacional. Com a inflação afetando o humor do eleitorado e ameaçando seu projeto de reeleição, a irritação do ex-capitão só cresceu. Apesar de ter derrubado o presidente anterior da empresa, Roberto Castello Branco, no início de 2021, por sua recusa em se dobrar a medidas populistas que prejudicassem a companhia, intervenções mais agressivas de Bolsonaro vinham sendo contidas pelo Ministério da Economia.

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O conflito militar desencadeado pela Rússia, porém, funcionou como uma oportunidade para o presidente investir novamente contra a empresa. E, desta vez, as defesas do passado não existem mais. Até mesmo o ministro da Economia, Paulo Guedes, arrefeceu sua resistência a subsídios que contenham artificialmente os preços dos combustíveis. Se, no passado recente, o ministro defendia apenas medidas mais brandas, como a extinção de impostos federais incidentes sobre a gasolina e o diesel, agora, sob a justificativa de momento de exceção a partir de uma crise internacional, passou a aceitar iniciativas mais agressivas, que foram analisadas em uma série de reuniões das quais participou na última semana.

Na terça-feira 8, Guedes e os ministros da Casa Civil, Ciro Nogueira, e de Minas e Energia, Bento Albuquerque, se encontraram no Palácio do Planalto com os presidentes da Petrobras, Joaquim Silva e Luna, e do Banco Central, Roberto Campos Neto, para traçar uma estratégia para o governo. No dia seguinte, o ministro da Economia se reuniu com congressistas na casa do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, para tentar alinhar o apoio a dois projetos de lei defendidos pelo PT, que vinham tendo as suas votações adiadas nas últimas semanas. Relatados pelo senador Jean Paul Prates (PT-RN), eles propõem um valor fixo para a cobrança de ICMS sobre o petróleo — o que desagrada aos governadores, que travaram uma possível votação na quarta-feira — e um fundo de estabilização dos preços do combustível. Na quinta-feira, pressionada pelos custos, a Petrobras reajustou a gasolina em 18,8% e o diesel em 24,9%. Até o fechamento desta edição, o governo ainda batia cabeça sobre as medidas que pretende tomar e qual sua capacidade de subsidiar a gasolina e o diesel temporariamente. “Não conheço um caso de fundo criado com essa finalidade que tenha sido bem-sucedido”, diz David Zylbersztajn, ex-presidente da Agência Nacional do Petróleo (ANP). “Se você sobretaxar as exportações, por exemplo, vai quebrar a empresa.”

DESGOSTO - Posto de combustível em Nova Jersey: a tensão elevou os preços para consumidores de todo o mundo -
DESGOSTO – Posto de combustível em Nova Jersey: a tensão elevou os preços para consumidores de todo o mundo – (Justin Lane/EPA/EFE)

No Ministério da Economia, a justificativa para a guinada é que, se a guerra persistir, os preços podem até dobrar. Com isso, as chances de reeleição de Bolsonaro tornam-se exíguas. E, mesmo com o reajuste, a Petrobras tem sido comedida. Segundo a Associação Brasileira dos Importadores de Combustíveis (Abicom), antes do dia 10 a defasagem média no diesel era de 40% , enquanto a da gasolina estava em 30%. O problema é que, com os preços do mercado interno ainda mais baixos que no exterior, pode acontecer um desabastecimento. Afinal, os importadores não vão querer trazer petróleo de fora para processamento e venda no país — e o Brasil ainda depende em 30% de importações. “A importação já está totalmente inviabilizada pela oferta de óleo barato aqui. Sem dúvida, já está ocorrendo um prejuízo para a Petrobras e para os seus acionistas, coisa que a gente viu pela última vez em 2012”, diz Sergio Araujo, presidente da Abicom.

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CAMPO DE BATALHA - Bombeiros combatem incêndio perto de Kiev: os custos da guerra -
CAMPO DE BATALHA – Bombeiros combatem incêndio perto de Kiev: os custos da guerra – (Roman Pilipey/EPA/EFE)

Em suas investidas contra a petrolífera, Bolsonaro se vale, entre outras táticas, do ataque pessoal ao presidente da estatal, um general que ele próprio alçou ao comando da empresa. A estratégia de fritura de Joaquim Silva e Luna tem sido a mesma usada para desmoralizar o antecessor: a exposição de seu salário e o questionamento de sua competência para o cargo. “O diretor ganha 110 000 reais por mês. O presidente, mais de 200 000 por mês e no final do ano ainda têm alguns salários de bonificação. Os caras têm que trabalhar”, afirmou o presidente, em um evento no fim de fevereiro. “Eles têm que apresentar a solução e mostrar o que está acontecendo. ‘Ah, a gasolina tá alta’. Cai no meu colo. Eu não tenho como interferir na Petrobras, mas cai no meu colo.” Embora trate de não demonstrar publicamente sua insatisfação, pessoas próximas a Luna dizem que as cobranças públicas abalaram o humor do general e ele já avalia a possibilidade de deixar o cargo.

CHANTAGEM - Gasoduto Nord Stream: responsável pelo abastecimento da Europa com energia, virou alvo de sanção -
CHANTAGEM – Gasoduto Nord Stream: responsável pelo abastecimento da Europa com energia, virou alvo de sanção – (Jens Büttner/Picture-Alliance/AFP)

Em uma dose extra de pressão, Bolsonaro nomeou como o próximo presidente do conselho de administração da empresa Rodolfo Landim, atual presidente do Flamengo e seu aliado de primeira hora. Segundo o conselheiro Marcelo Mesquita, representante dos acionistas minoritários na Petrobras, o nome de Landim foi recebido “com normalidade”, mas só o tempo dirá se haverá intervenção. “O governo pode subsidiar combustível se quiser e se tiver dinheiro, mas nunca a Petrobras. O conselho não pode aprovar subsídio. É ilegal”, diz. “Subsídios para a gasolina e o diesel são um mecanismo de transferência de renda perverso. Se o Brasil fosse um país rico, essa discussão já seria horrível. Sendo um país pobre, então, passa a ser uma bomba atômica. Os pobres são os que mais sofrem com a quebra de contratos e ambiente nefasto a investimentos e criação de empregos. Populismo só traz pobreza, e não riqueza.” Na segunda-feira 7, dia em que a nomeação de Landim foi confirmada e quando Bolsonaro abriu novamente seu vasto repertório de declarações de caráter intervencionista, as ações da Petrobras caíram 7%, um paradoxo uma vez que os papéis das concorrentes internacionais se valorizavam em decorrência do conflito no Leste Europeu.

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PROXIMIDADE - Bolsonaro com Landim: do Flamengo para a presidência do conselho da maior empresa do país -
PROXIMIDADE – Bolsonaro com Landim: do Flamengo para a presidência do conselho da maior empresa do país – (Daniel Ramalho/AFP)

Um bloqueio amplo ao combustível da Rússia, como o proposto por Biden, tem impactos gigantescos na economia global. O país de Vladimir Putin é o segundo maior exportador do mundo, atrás apenas da Arábia Saudita, e responsável por 10% do fornecimento mundial. Os membros da aliança militar Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) compram mais da metade dos 7,5 milhões de barris diários de petróleo bruto e produtos refinados que a Rússia exporta. Segundo o Instituto Brasileiro de Petróleo e Gás (IBP), cada 1 milhão de barris de demanda não atendida se reflete em um adicional de 14 a 20 dólares no preço do barril. Uma sanção de larga escala tem potencial de gerar um déficit de 5 milhões de barris por dia, de acordo com estimativas do Bank of America, podendo elevar os preços do petróleo para o patamar de 200 dólares por barril, algo explosivo para a inflação brasileira e de todo o mundo. As perspectivas de um acordo de paz entre Rússia e Ucrânia intermediado por Turquia e Israel desanuviou parcialmente o cenário. Mas o risco ainda segue latente. “Já há no mercado um aumento na busca e nos preços por contratos futuros de petróleo, com operadores apostando que o petróleo possa chegar a 200 dólares por barril”, diz Daniel Cobucci, analista do Banco do Brasil Investimentos.

EM CONJUNÇÃO - Os ministros Ciro Nogueira e Guedes: alinhamento em torno da reeleição -
EM CONJUNÇÃO – Os ministros Ciro Nogueira e Guedes: alinhamento em torno da reeleição – (Pedro Ladeira/Folhapress/.)

O mundo torce para que o conflito não leve a situação para esse nível e que as propostas de cessar-fogo evoluam. Por enquanto, as sanções que levariam os preços a esse patamar têm mais uma função de pressão. Afinal, os Estados Unidos e o Reino Unido, que se comprometeram com elas, são mercados menos importantes para as commodities russas do que a União Europeia, que preferiu ainda não dar esse passo. Cerca de 30% das importações de petróleo cru e 40% de todo o gás natural que chegam à Europa são de origem russa. Para o Velho Continente, pelo menos por enquanto, é praticamente impossível abrir mão desse fornecimento. Ainda assim, a Europa anunciou que quer cortar em dois terços a sua dependência da energia russa até o fim da década. Ela também avalia alternativas de gás, mesmo que o custo do transporte na forma líquida por navios seja mais alto do que via gasodutos. Outra opção seria retomar as usinas a carvão como fonte energética, uma ação emergencial que vai contra os compromissos ambientais assumidos pelo bloco.

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GENERAL SOB ATAQUE - Silva e Luna, da Petrobras: desrespeitado por Bolsonaro -
GENERAL SOB ATAQUE – Silva e Luna, da Petrobras: desrespeitado por Bolsonaro – (Marcelo Camargo/Agência Brasil)

A atual crise no setor de combustíveis fósseis aponta para uma completa reestruturação do modelo energético em nível global. No Brasil, a própria Petrobras também passa a ser alvo de maior atenção por parte dos investidores. As ameaças de intervenção na empresa lembram diversos momentos complicados da estatal. Historicamente, a Petrobras acumulou uma triste tradição de pilhagem por governos, interessados em tirar proveito de seu monumental potencial de gerar riqueza. A situação atingiu o seu paroxismo nas gestões petistas, quando a petrolífera foi obrigada a arcar com uma carga pesadíssima de investimentos, para ajudar o governo federal a manter a economia rodando, em projetos faraônicos de refinarias como a Comperj, no Rio de Janeiro. Ou protagonizando aquisições que se provaram desastrosas, como a da refinaria americana de Pasadena, na Califórnia, que recebeu o apelido de “enferrujada” dado o seu grau de obsolescência. As investigações do escândalo do petrolão ainda mostraram personagens como o ex-diretor de abastecimento da empresa Paulo Roberto Costa, elo entre os contratos da companhia e propinas pagas a políticos. No governo de Dilma Rousseff, a empresa foi usada no esforço de controle da inflação de toda a economia, ao segurar os repasses do custo internacional dos combustíveis. Essa estratégia, muito parecida com a que Bolsonaro quer repetir agora, acabou provocando um prejuízo de 45 bilhões de dólares nas contas da estatal.

PETROLÃO - O ex-diretor Paulo Roberto Costa: dinheiro desviado para corrupção durante a gestão petista -
PETROLÃO – O ex-diretor Paulo Roberto Costa: dinheiro desviado para corrupção durante a gestão petista – (Cristiano Mariz/VEJA)

Para recuperar os abusos petistas, a empresa realizou uma drástica reestruturação a partir de 2016. Desde então, adotou o preço de política de importação, que baseia o valor cobrado das distribuidoras domésticas de acordo com a variação do petróleo no mercado internacional e com a cotação do dólar. Além disso, foi obrigada a seguir regras mais severas de governança e de transparência na prestação de informações exigidas pelo órgão que regula o mercado de capitais nos Estados Unidos, a Securities and Exchange Commission (SEC). Também houve um drástico controle de dívidas e a venda de ativos tidos como não estratégicos pelos ex-presidentes Pedro Parente e Castello Branco.

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MAU NEGÓCIO - A refinaria americana de Pasadena: compra ruinosa de uma unidade obsoleta -
MAU NEGÓCIO – A refinaria americana de Pasadena: compra ruinosa de uma unidade obsoleta – (Gilberto Tadday/.)

É natural que, em meio a uma crise global, o consumidor não deseje pagar mais pela gasolina ou por outros produtos impactados pela inflação. Mas as soluções de curto prazo, principalmente com viés eleitoreiro, podem sair muito mais caras no futuro, pesando principalmente no bolso do contribuinte. De fato, a Petrobras deu, no ano passado, lucro de 106 bilhões de reais, o tal “lucro abusivo”, segundo Bolsonaro. O presidente, porém, se esquece de dizer em suas declarações bombásticas e populistas que o governo nunca recebeu tantos dividendos da Petrobras quanto aconteceu no ano passado. São recursos que podem servir para conduzir políticas públicas de forma eficiente, se não forem desperdiçados. Gastar bem esses recursos deveria ser a prioridade, e não aproveitar uma conjuntura global adversa para avançar sobre o cofre da maior empresa do país.

Publicado em VEJA de 16 de março de 2022, edição nº 2780

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