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Esqueça o cisne negro, a preocupação na economia é com o rinoceronte cinza

A americana Michele Wucker explica como o seu conceito de um evento óbvio e de grande impacto ilustra melhor a Covid-19 e os grandes riscos para o Brasil

Por Carlos Valim
Atualizado em 18 dez 2020, 22h03 - Publicado em 28 nov 2020, 04h25

Durante todo o ano de 2020, os jornais e revistas foram inundados de artigos econômicos chamando a pandemia de Covid-19 de um evento com a característica de um cisne negro, um animal inesperado em meio ao mar de cisnes brancos. Esse conceito, criado pelo analista de risco e estatístico líbano-americano Nassim Taleb, virou uma importante metáfora para caracterizar acontecimentos imprevisíveis e de imenso impacto. A teoria ficou popular e se espalhou pelo mundo dos investimentos por volta de 2008, para explicar o impacto da crise financeira internacional iniciada por créditos imobiliários podres detidos por bancos americanos. Corta para 2020 e novo coronavírus causa mais uma gigantesca crise econômica global. Os analistas rapidamente o chamam de um novo cisne negro. O problema é que Taleb tem dito em palestras que os cientistas e muitos dos tomadores de decisão sabiam há há muito tempo que o planeta estava mal preparado para uma possível, e até provável, emergência pandêmica.

Então, se não é um cisne negro, o que pode explicar a crise atual? A resposta está numa outra teoria de cunho zoológico mais recente, a do rinoceronte cinza, desenvolvida pela autora americana Michele Wucker, que presta consultoria sobre riscos e que escreveu o livro The Grey Rhino: How to Recognize and Act on the Obvious Danger We Ignore (O rinoceronte cinza: Como reconhecer os riscos óbvios que ignoramos e agir de maneira eficaz), publicado em 2016 pela St Martin’s Press, e que receberá tradução em português com lançamento previsto para abril de 2021 pela Editora Citadel. O conceito trata de eventos de impacto gigantescos que podem estar sendo percebidos ou não, mas que muitas vezes são tratados sem a precaução necessária.

Muitos dos problemas econômicos que poderão afligir o mundo num período pós-pandemia podem ser classificados assim, como o aumento da desigualdade, as mudanças climáticas e os desequilíbrios financeiros por conta de dívidas corporativas e bolhas de preços de ativos. O Brasil tem um claro rinoceronte cinza, visto pelo mercado financeiro, mas que muitas vezes parece não ser tratado com o devido cuidado pelo governo: o risco fiscal. E a demora para o avanço das reformas também criam obstáculos que podem afetar fortemente o país nos próximos anos, como mostra reportagem de capa de VEJA. Foi, inclusive, analisando a crise argentina a partir da segunda metade da década de 1990 que Wucker, uma especialista em América Latina, criou o conceito. Ela conta sobre isso e outros temas na entrevista exclusiva abaixo.

 

Como explicaria a teoria de rinoceronte cinza?

O básico do conceito é aquela coisa grande, perigosa, de grande impacto e assustadora que vem em direção a você. São duas toneladas de peso e com chifres perigosos. É cinza para enfatizar que é mais provável distrairmos a nossa atenção de coisas mais óbvias. O cinza é a cor verdadeira do rinoceronte, apesar de existirem as espécies de rinoceronte negro e branco, cores as quais eles não têm, na verdade, o que acaba reforçando a metáfora. As pessoas fazem as suas próprias interpretações, porque o rinoceronte cinza não está necessariamente em algum lugar. Eu peço para as pessoas imaginarem um animal grande bem em frente delas, bufando e se preparando para atacar. Mas a verdade é que ele pode estar longe no horizonte, ou bem perto de você. Isso faz parte da análise.

Os rinocerontes cinzas acabam sempre sendo ignorados?

O conceito é que essa coisa grande tem grande impacto, mas não necessariamente é ignorada. É mais provável que seja ignorado do que as pessoas gostariam. Mas algumas pessoas prestam atenção a ela. A questão central é o que é necessário fazer para ser uma das pessoas que presta atenção, e então usar a força do rinoceronte em seu benefício, em vez de ser atropelado por ele.

Então, normalmente, ele pode ser percebido, mas não se sabe como lidar com isso?

Usualmente, sim, mas nem sempre. Isso é importante. Muitas pessoas aplicam as suas próprias definições ao conceito de rinoceronte cinza, e dizem que são esses eventos sempre ignorados. Mas já existe uma definição muito mais antiga para isso, que é a do elefante na sala, em que se normaliza ignorar algo grande. O rinoceronte cinza é diferente, ele te dá uma escolha, de o ignorar ou não. Você pode o analisar a partir de suas características, de tamanho e de velocidade com que vem atrás de você, por exemplo.

Quanto mais rápido ele vem mais preocupante se torna?

O paradoxo é que, quanto mais rápido e mais perto está, mais provável é de se reagir. Mas, ao menos que se olhe com antecedência para ele e se pense num bom plano, quando ele está mais próximo, a chance maior é de se tomar uma decisão errada, baseada no desespero. Por isso é importante se reconhecer antes e criar uma estratégia para escapar do problema. Foi o caso da Covid-19. Havia diversos planos para se lidar com uma pandemia. Mas muitos países ignoraram as estratégias mais bem pensadas e razoáveis, que eram baseadas em fatos.

Então, a pandemia foi um rinoceronte cinza, não um cisne negro?

Sim. O mais interessante é que o cisne negro ficou muito popular em 2008, logo depois da quebra do Lehman Brothers. Mas o conceito foi muito mal usado, porque as pessoas fingiram que a crise se tratava de algo que ninguém viu chegando. Mas eu percebia pelos mercados financeiros e imobiliário da época que havia algo de errado. Em 2000, comprei um apartamento no Upper West Side, em Manhattan, que quase dobrou de preço em quatro anos. Eu o vendi seis meses antes do pico. Quem conhece a obra do (historiador econômico americano) Charles Kindleberger, quem olhava para volatilidade e ciclos econômicos, percebia os problemas. Havia grandes avisos do BIS (Banco de Compensações Internacionais) e até o FBI fez uma investigação sobre fraudes em empréstimos subprime. Christine Lagarde (ministra da economia da França, na época) falava de tsunami financeiro. Havia muitos avisos. Quem tinha um mínimo bom senso podia olhar para o mercado imobiliário e dizer que havia algo errado. Alan Greenspan (ex-presidente do Federal Reserve), em retrospectiva, disse que era um cisne negro e ninguém percebeu ele chegando. Mas era uma desculpa. A alegação de que poderia ser um cisne negro é que várias coisas esperadas se juntaram de uma forma inesperada e fez a crise ainda maior. Por isso, o termo do mundo zoológico rinocerontes cinzas é tão apropriado. O coletivo de rinoceronte em inglês é crash, a mesma palavra usada para crises financeiras. Por trás de cada cisne negro existe um crash de rinocerontes.

Muitas vezes, então, as pessoas escolhem não ver para não precisar agir?

Às vezes, as pessoas até respondem ao rinoceronte, mas elas só empurram o problema para frente. Isso não faz ele ficar menos provável de acontecer. Só significa que vai acontecer mais tarde e que vai ser maior. Um bom exemplo é o uso de quantitative easing pelo mundo (grandes compras de títulos privados por parte dos governos e bancos centrais), e outros efeitos colaterais de políticas monetárias adotadas para manter os mercados financeiros estimulados.

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O grande problema brasileiro de risco fiscal e de reformas que nunca saem do papel, sendo discutidas por duas ou três décadas, parece ser exatamente isso.

Parece que sim. Existem muitas incertezas no mundo. Mas há coisas que sabemos que serão um grande problema. A crise brasileira parece ser a mesma que a de Chicago, cidade onde moro, e que enfrenta uma grande questão de pensões e de orçamento. Às vezes, o problema é reconhecido, mas se inventa razões para não agir. A questão é identificar em que fase da crise de rinoceronte cinza se está, e descobrir o que precisa ser feito, antes que se chegue ao momento de urgência e de pânico. Pode até se concluir que não há nada mais a ser feito. Quando um cisne negro chega não se tem muito a fazer, mas quanto aos rinocerontes cinzas é possível se planejar, aplicar a teoria para enfrentar essas crises e se tornar mais resiliente.

Quais são as fases?

São cinco: negação, modelagem, que é quando se chuta a latinha para frente, diagnóstico, pânico e ação. E é possível e ir voltar para cada fase, durante o processo.

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Qual é a relação da criação do termo e a América Latina?

A primeira vez que visitei a Argentina foi na segunda metade dos anos 1990 e depois estive lá em 2001, e mais várias vezes. Foi o momento que a crise financeira argentina explodiu, com a paridade do peso argentino com o dólar. Eles amavam a ideia de serem os queridinhos dos mercados emergentes. Se tivessem deixado essa ideia de lado antes, francamente, teriam tido um desempenho muito melhor.

A forma com que os países lidam com rinocerontes cinzas é cultural?

Pensei muito tempo sobre isso no último ano e o meu próximo livro terá todo um capítulo sobre o assunto. Percebemos que existem grandes diferenças de sociedades coletivistas para as individualistas ocidentais. A pandemia mostrou isso muito claramente, com os países do Oriente respondendo melhor. E há uma grande diferença em governos. Os países com poder mais centralizado têm mais facilidade de tomar ações. Nas democracias, não se entende quem vai responder por cada coisa. Para as pessoas do Ocidente a resposta oriental parece autoritária. A relação da população com o governo também muda a resposta. A Suécia pode adotar uma abordagem mais flexível à pandemia por saber que possui maior coesão social no país. Já em Singapura as pessoas simplesmente confiam que o governo vai tomar a melhor ação para todos. Nas democracias, precisamos de um ajuste de atitude, pelo menos, reavaliar as responsabilidades de cada parte.

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Quais são os maiores rinocerontes cinzas no mundo, na atualidade?

Mudança climática, desigualdades e fragilidades financeiras. E todos os três pode ser inter-relacionados e afetar uns aos outros, piorando a situação. Os bancos centrais estão preocupados com os impactos de preços das vulnerabilidades ambientais no mundo. Já as bolhas dos preços dos ativos podem trazer mais desigualdades, o mesmo pode acontecer com o excesso de dívida das empresas. A recuperação da economia pelo mundo agora está sendo interpretada na forma de K, em vez de V. Isso significa que alguns países, setores e empresas vão se recuperar rapidamente enquanto outros ainda estão caindo.

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