Aumento de Bolsonaro a policiais detona crise que poderia ter sido evitada
Reajuste provoca protestos de servidores públicos, que podem escalar para greve geral em fevereiro; reforma administrativa amenizaria o problema
Tradicionalmente tranquilo no cenário político e econômico, dado os recessos do Parlamento e do Judiciário, o mês de janeiro começou com um problema incômodo para o governo. Na virada do ano, o funcionalismo público se revoltou com os aumentos concedidos por Jair Bolsonaro apenas aos policiais federais e rodoviários, categorias de forte apoio ao presidente — e passou a exigir tratamento similar. Ao dar preferência a um segmento específico, o chefe de Estado provocou uma gritaria geral que pode ter consequências imprevisíveis e desestabilizar sua gestão. Auditores da Receita Federal cruzaram os braços na alfândega da fronteira com a Venezuela e formou-se uma fila de mais de 1 000 caminhões na região. Situação parecida se desenrolou em Foz do Iguaçu, na fronteira com o Paraguai. No Porto de Santos, navios com centenas de milhares de toneladas de trigo vindas da Argentina esperavam a aprovação de desembaraço por fiscais. Houve problemas também nos portos de Itajaí (SC), Pecém (CE) e Rio de Janeiro. No Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), que tem quase 1 trilhão de reais em processos tributários a serem decididos, os julgamentos foram suspensos. E, com essas paradas, o governo corre o risco de perder arrecadação. No Banco Central, os auditores entregaram cargos de chefia e pressionaram o presidente do órgão, Roberto Campos Neto, por aumentos.
A situação pode ainda piorar. As revoltas corporativas podem escalar para uma greve geral em fevereiro, se uma paralisação programada para o dia 18 não resultar em reposição salarial. O que é pior para o governo é que tudo isso poderia ter sido significativamente minimizado — ou até mesmo evitado — se o projeto de reforma administrativa, prometido ainda na campanha eleitoral e estruturado pelos técnicos do Ministério da Economia, não tivesse sido engavetado pelo presidente. Além da resistência natural de Bolsonaro ante as medidas que poderiam prejudicar seus planos de reeleição, contribuiu para o sucessivo adiamento a articulação dos ministros ligados ao Centrão, que aconselhavam o presidente a deixar o tema de lado, em nome dos próprios interesses e compromissos com o corporativismo instalado na máquina pública. De acordo com os planos do ministro da Economia, Paulo Guedes, a racionalização de cargos e carreiras do funcionalismo tem o potencial de poupar ao governo gastos de até 30 bilhões de reais ao ano. Com o enxugamento da máquina administrativa — e os recursos que estariam disponíveis — seria possível corrigir distorções salariais em funções essenciais. Para efeito de comparação, o aumento prometido por Bolsonaro para os policiais vai custar 1,7 bilhão de reais, uma fração do montante a ser economizado com a reforma.
Há muito o que fazer para melhorar a estrutura administrativa do governo federal. A União desembolsa, por exemplo, quantias vultosas para manter trabalhadores concursados em carreiras que se tornaram obsoletas com o avanço da tecnologia, mas que não podem ser alocados em outras áreas nem dispensados. O custo mensal com datilógrafos chega, por exemplo, a 30 milhões de reais. O governo emprega até mesmo chaveiros, uma das diversas atividades que deveriam ser terceirizadas de acordo com a demanda. Segundo as contas do Ministério da Economia, a despesa bruta anualizada com funções extintas ou em extinção ultrapassa 8,2 bilhões de reais. “O nosso sistema de gestão pública é extremamente complicado. Foi sendo construído ao longo de muitos anos e absorvendo uma série de idiossincrasias momentâneas de diversos períodos históricos, e tudo isso está acumulado com a gente até hoje”, diz Caio Mario Paes de Andrade, secretário especial de Desburocratização, Gestão e Governo Digital.
As mudanças propostas pelo texto da reforma, a PEC 32, que tem o deputado Arthur Maia (DEM-BA) como relator, incluem avaliações periódicas dos servidores públicos, contratações temporárias para trabalhos que não exigirão funcionários permanentes e o uso de ferramentas digitais, inclusive para que o público avalie a qualidade dos serviços. “O Brasil ainda está na idade das trevas em termos de gestão por resultado. E essa dinâmica poderia trazer melhorias não só do ponto de vista fiscal, mas do próprio funcionamento do Estado”, defende Felipe Salto, diretor-executivo da Instituição Fiscal Independente (IFI) do Senado. “O texto da reforma, inclusive, é até tímido em pontos essenciais, como em não atacar privilégios que se perpetuam, sobretudo no Judiciário, como pagamentos acima do teto salarial”, avalia.
Entregue ao Congresso em agosto de 2021, a PEC 32 segue parada pela falta de interesse do próprio governo em trabalhar pela sua aprovação. “Eu procurei ao máximo fazer com que os elementos expressos na reforma fossem de Estado, não de governo. Trabalhei muito junto a parlamentares”, diz o relator Maia. “Durante todo o processo, apesar de muito apoio do Ministério da Economia, houve resistência do Palácio do Planalto, o que dificultou os trâmites”, afirma. Recentemente, o presidente chegou a demonstrar interesse pelo assunto em conversas com o ministro Paulo Guedes. O problema é que a janela de oportunidade para a aprovação está praticamente fechada. Nas conversas internas do Ministério da Economia, é dado como certo que a matéria não terá vez em ano eleitoral. O próprio Bolsonaro já admite abertamente que não conseguirá dar vazão à proposta, e na última semana declarou que, durante os seus sete mandatos como deputado federal, percebeu que nas proximidades dos pleitos as negociações com o Congresso deixam de existir.
A leitura de deputados é de que a atual gestão realmente entregou os pontos no que diz respeito à reforma do Estado. Trata-se de um assunto de condução complexa, que implica inevitavelmente embates e desgastes com os servidores ao afrontar o corporativismo. “O governo não tem se dedicado ao tema como a matéria mereceria. De fato, fazer uma reestruturação organizacional não é fácil. Mexe com setores que são bastante organizados e requer uma dedicação plena de todas as frentes, especialmente do governo federal”, diz o deputado Alex Manente (Cidadania-SP). A mesma sensação é a de economistas que acompanham o tema. “Minhas expectativas em relação à aprovação de reformas neste governo são muito baixas. A agenda econômica que elegeu Bolsonaro está morta”, afirma a economista Ana Carla Abrão, responsável pelo desenho de uma proposta de reforma do Estado ao lado do ex-presidente do Banco Central Armínio Fraga e do jurista Carlos Ari Sundfeld.
Como demonstra a crise provocada pelo aumento dos policiais, o país chegou ao limite orçamentário, quando nem novos reajustes de salários, nem investimentos podem ser feitos. “É necessário frear o crescimento dos gastos obrigatórios, para abrir espaço fiscal e um uso melhor dos recursos. O investimento no setor público foi sendo zerado, para permitir que os gastos obrigatórios com o funcionalismo continuassem a crescer”, afirma Ilan Goldfajn, ex-presidente do Banco Central. Por três anos, Bolsonaro procrastinou medidas que poderiam evitar essa situação. Agora a conta chegou.
Publicado em VEJA de 19 de janeiro de 2022, edição nº 2772