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Paulo César Pinheiro: ‘A música de hoje está mais fraca’

Aos 70 anos, poeta e compositor de mais de duas mil canções critica a tecnologia e faz diagnóstico pouco otimista da música brasileira

Por Leandro Resende
28 abr 2019, 13h15

O poeta e compositor Paulo César Pinheiro é um homem do seu tempo, mas que não parou nele. Conserva hábitos antigos, como a predileção por ouvir músicas ainda sem letra em fitas cassete; escreve à mão e não tem e-mail ou redes sociais. Mas isso não significa que ele viva do passado de sua vasta obra. Pelo contrário: aos 70 anos, completados neste domingo, 28, celebra suas novidades.

Só neste 2019 irá lançar pelo menos 78 canções inéditas e dois novos livros, que se somarão a uma produção que já conta com mais de duas mil canções escritas, romances, peças de teatro e livros de poesia. Ele recebeu VEJA para uma conversa na varanda da sua casa em em Laranjeiras, Zona Sul do Rio de Janeiro, na qual lembrou parceiros antigos, contou histórias e fez um diagnóstico pouco otimista sobre a situação da música brasileira.

Neste mês o senhor se apresentou por três semanas na Casa do Choro, cantando suas parcerias com três amigos que já faleceram. Baden Powell, João Nogueira e Mauro Duarte. Aos 70 anos, qual o lugar da saudade na sua vida? Sinto saudades de parceiros e de amigos. Anoto quando um deles morre. Outro dia peguei um papel e vi que já tinha 32 parceiros que morreram. A última foi a Dona Ivone Lara?  Nem sei. [foi Tito Madi, morto em setembro de 2018]. Vivi com Baden, João e Mauro, cada um em um tempo, às vezes todos juntos. Decidi homenageá-los na Casa do Choro [espaço dedicado ao gênero no Centro do Rio] como retribuição por tudo o que recebi em virtude dos meus 70 anos. Para cada um deles, convidei alguém. No caso do Mauro Duarte, por exemplo, chamei a Cristina Buarque, que conheço desde os meus 20 anos. Ela disse que já estava aposentada, mas veio, por mim e pelo Mauro. Foram shows que me comoveram muito, e a voz embargou em vários momentos. Nunca consegui cantar Espelho, que fiz com João Nogueira. Ele mesmo se emocionava cantando, são obras muito fortes.

Só com esses três parceiros que citamos já há uma vasta obra, de clássicos da MPB e do samba. Calcula quantas músicas já compôs? Tenho mais que duas mil músicas. Se contar com regravações, deve dar mais de cinco mil. Meus parceiros cobrem mais de 100 anos de história da música, se contar que musiquei choros do Pixinguinha, que conheci e hoje teria 122 anos, e faço canções com Miguel Rabello, que tem 23 anos.  Devo ter uns 150 parceiros. Só neste ano serão lançadas pelo menos 78 músicas inéditas minhas, em diversos trabalhos, do Dori Caymmi, Yamandu Costa, Glória Bonfim… Há, ainda, para sair no mês que vem, um livro meu de contos, a partir da época em que escrevi para O Pasquim.

Os romances e os livros de poesia são mais conhecidos, mas um livro de contos é novidade. Como é a obra? São histórias de personagens que conheci ao longo da vida, todo mundo conhece ‘figuraças’. Vivi em lugares no Rio de Janeiro em que esses tipos eram comuns. São Cristóvão, por exemplo, é coalhado desses, a maioria dos que descrevo são de lá. É um lugar do Rio que parou no tempo: ninguém saiu e nem chegou lá, é um vão da história. Fui para O Pasquim explorando algo que não me era trivial. Quando eu parto para escrever, é aquele enredo de romance, tragédia, drama. Na crônica veio a minha verve humorística, que carioca sempre tem.

Tem mesmo? Ainda é possível sorrir e buscar inspiração em meio às situações difíceis pelas quais o Rio de Janeiro tem passado? Eu nasci em Ramos, perto do Complexo do Alemão, quando a barra não era pesada. De lá, morei na Praça Seca, que hoje é um lugar de guerra quase todo dia entre traficantes e milicianos. Eu vou saindo dos lugares e vai dando merda. Morei na Mangueira, subia o morro, passei pela Tuiuti, Copacabana, Leblon, Barra da Tijuca…. Conheço a cidade de ponta a ponta. Do mais distante subúrbio até o Recreio dos Bandeirantes, e sempre falei disso nas minhas canções. Por isso, te digo que sim, o Rio inspira, às vezes para assuntos ruins. Tenho  sambas premonitórios, como o Forças da Natureza, em parceria com João Nogueira. Fiz outro, com Wilson das Neves, que fala muito do Rio de hoje também, O Dia Em Que o Morro Descer e Não For Carnaval. Hoje eu não tenho mais pernas para andar pela cidade, mas aqui é o meu quintal. É o tema recorrente da minha vida.

Sem esse deslocamento pela cidade, onde encontra inspiração? A tecnologia ajuda? Caguei para tecnologia, não tenho nem celular. Trabalho com fita cassete. Escrevo tudo à mão, até meus livros. O mundo caminhou para frente, é mais moderno, mas a tecnologia está fazendo a gente andar para trás. Está todo mundo viciado no celular. Pessoas desligadas do mundo, sem conversar. Mesa de bar, de oito, dez pessoas, e as pessoas se falando pela tela? Já vi isso! Ninguém lê mais porra nenhuma. O conhecimento que se coloca nas canções de hoje é tosco, porque vem dessa coisa tosca que é a Internet. Já saí com amigos intelectuais, jornalistas, que dizem coisas erradas porque o Google lhes disse. E eu respondo: “não, eu vivi isso, não foi assim”.

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E esse cenário afeta a música desses tempos de avanços tecnológicos? Sim, porque a música de hoje está muito mais fraca. A composição hoje é tosca, pequena. Ignorante, até. O repentista do Nordeste dá um banho no cantor de rap carioca ou paulista, porque tem mais conhecimento. Essa garotada não lê, só vê o que está no computador. Nasceu uma linguagem pobre, menos que telegráfica. O compositor deixou de ser alguém conhecido, a obra dele também, porque tudo é muito rápido e descartável. Vi na TV outro dia que há um escritório de músicas de sofrência, caras que se reúnem para fazer até cinco músicas por dia. Vai escutar… São harmonias pobres, palavras retiradas de redação de colégio primário.

Diante das críticas que o senhor faz ao que se entende como o mainstream da música de hoje, acredita que há espaço para compositores que se espelham na sua obra? É um tempo terrível. Fico muito agoniado quando vejo talentos sem perspectiva de futuro. Só o que se expande no Brasil é a música ruim, que vai para o Spotify. Nada vai se imortalizar. Consegui viver de música, e bem, muito por conta do volume da obra. Recebo direito autoral do Canto das Três Raças de Israel. Como? O que os caras entendem disso? Não sei. E o que vem por aí é o robô compositor. O robô vai fazer a música. Eu até torço para que dê uma pane nesses satélites e que a tecnologia desapareça. Que aí o homem volta a conversar, a escrever, a ler.

No meio do samba, há uma explosão recente de rodas tocadas só por mulheres, e, também, uma presença maior delas em espaços antes considerados hostis e exclusivos dos homens. Percebe isso? Se as mulheres tiverem talento, podem, inclusive, fazer melhor do que os homens. Nunca houve separação por sexo em roda de samba. Hoje em dia está havendo uma separação estranha, racial e cultural.  As pessoas dizem “ninguém canta essa música agora não, essa música é machista”. E aí não canta Ataulfo Alves, Custódio Mesquita, Baden Powell, Vinicius de Moraes, porque são machistas? Essa definição está correta? Convivi com eles. Não me parece. Eu prefiro que as rodas de samba sejam de homens e de mulheres. Se a mulher for talentosa, ela ganha de qualquer homem. Se não for, vai ser só uma rodinha de samba e mais nada. Assim como já teve a Rosinha de Valença, no violão. Dona Ivone Lara se destacou no meio dos homens. A Chiquinha Gonzaga conquistou esse espaço em 1880, lá no outro século, no século XIX, que era muito pior.

Canto das Três Raças (canção de Paulo César Pinheiro e Mauro Duarte) é uma canção que tematiza, no limite, a história do negro no Brasil. Mas o senhor é um homem branco. Isso é um tema em discussão hoje, a questão do “lugar de fala”. O que pensa disso? Sou um dos compositores que mais fez músicas sobre temas afro-brasileiros. E aí, e fico fora da parada? Estou fora do meu lugar de fala? E eu não sou branco, sou mestiço. E eu não sou branco, sou mestiço, índio. Minha avó materna é índia, meu pai era caboclo, cafuzo, de Campina Grande. Sou negro, branco, índio, eu sou o Canto das Três Raças . Empoderamento, palavra da moda, daqui a 10 anos não existe mais. Lugar de fala também. Comecei a compor com 13 anos, hoje estou com 70, vi todos os movimentos, tropicália e da bossa nova, pagode…E não pertenço a nenhum deles. Minha música não é para um gueto, é para humanidade.

Boicota-se o artista A, se ele apoiou o candidato X, boicota-se B se este apoiou Y. Há canções suas que foram símbolos da luta contra a ditadura militar. Hoje, como vê a cobrança para que artistas se posicionem no espectro político? O artista não tem que obrigatoriamente se posicionar sobre nada. É compositor? Compõe. É cantor? Cante. É músico? Toque. Se posiciona apenas se quiser, ele é um cidadão do povo, como qualquer outro. Vejo amigos meus compositores que mudaram a maneira de ver a música, e não cobro deles nada. Não chego e digo, “ah, você era tão bom, porque está fazendo essa merda aí?” Porque vou cobrar isso dele? Nunca cobrei nada de ninguém.

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Mas há muitas canções suas com forte componente político. E que estão sendo lembradas, não é? Infelizmente para situação do país, mas felizmente pra mim (risos), essas músicas todas voltaram. Não deviam, mas são sinal dos tempos. Pesadelo (feita com Maurício Tapajós) foi uma canção que voltou agora, nos shows do MPB-4. Era sobre um tempo que passou. Mas 50 anos depois está de volta, falando das mesmas pessoas? É assustador.

Pesadelo virou tema informal da Guerrilha do Araguaia, contra a ditadura. Como que passou pela censura? Vivíamos cercados pelos censores. Aliás, até o Supremo Tribunal Federal faz censura agora, não é? O facão da censura estava sempre na minha garganta, sempre sendo cortado. Um dia chamei Maurício Tapajós e falei: vamos fazer algo direto? Sem metáforas? Ele disse que a censura não ia aprovar, mas eu insisti. Mostramos para Miltinho, do MPB4, que gostou, mas falou o mesmo. Para que a música fosse aprovada, enviei-a junto com outras do Agnaldo Timóteo. A censura nem olhou e aprovou a letra.  O nível dos censores era baixíssimo, eu conhecia dois que eram motorneiros de bonde. Certa vez censuraram uma canção chamada Sagarana, que fiz com João de Aquino em homenagem ao escritor Guimarães Rosa. Levei o livro no prédio da censura, mas eles não liberaram, acharam que era linguagem cifrada (risos). A ditadura me perseguiu muito, sempre tinha funcionários do DOPS nos meus shows.

Mais de 50 anos de carreira. Faltou ser parceiro de alguém? Não fui parceiro do Nelson Cavaquinho porque o Guilherme de Brito não deixou, por ciúme. Dona Ivone Lara a mesma coisa: fizemos Bodas de Ouro juntos, ela se gostou e sempre falava disso. Mas passou um tempo e vi que ela perdeu a empolgação – soube, depois, que o Délcio Carvalho tinha enciumado também. Cartola também foi próximo… Escutei muitas coisas em primeira mão dele. Todo mundo diz que ele fez O Mundo É Um Moinhopara filha dele, mas não é verdade. Estávamos em Mangueira batendo papo, quando passou uma moça nos seus 17 anos. E ele contou que tinha feito um samba para ela, que estava se perdendo na vida. (Ainda é cedo amor/ Mal começastes a conhecer a vida…) E ele olhando aquela cena com tristeza. Era filha de um amigo dele, de quem jamais tive notícia depois daquele dia.

E já teve caso de gente que te procurou, mas você recusou a parceria? Já, vários. Para ser meu parceiro, preciso conhecer o modo como a pessoa enxerga o mundo, arte, como lê a vida… Não faço música com quem eu não conheço. E amigos meus, queridos, fazem. E olha que eu já recusei música de gente famosa, hein?

Quando eu desligar o gravador, o senhor me conta de quem era? (Risos). Não.

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