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Oscar 2022: a difícil jornada do ator surdo que pode levar o prêmio

Destaque do filme 'No Ritmo do Coração', o americano Troy Kotsur já fez história ao se tornar o primeiro homem surdo indicado à estatueta

Por Marcelo Canquerino Atualizado em 30 mar 2022, 16h27 - Publicado em 25 mar 2022, 17h30

Surdo, o pescador Frank Rossi nunca entendeu a paixão de sua filha pela música. Ao notar os aplausos recebidos por ela após uma apresentação, ele almeja comprender o talento da filha: com as mãos em seu pescoço, pede que ela cante o mais alto possível, para que possa sentir a vibração de suas cordas vocais. A cena de arrancar lágrimas até do espectador mais durão é o clímax de No Ritmo do Coração, filme indicado em três categorias no Oscar 2022. O trabalho rendeu a Troy Kotsur a estatueta de melhor ator coadjuvante, fazendo dele o primeiro homem surdo a ser aclamado na premiação. No discurso de premiação, feito em linguagem de sinais, e traduzido por um intérprete, o ator se emocionou e agradeceu aos pais por onde chegou.

A relação entre um pai surdo e uma filha que escuta e ama música é uma realidade para Kotsur fora das telas. O ator, que teve a surdez identificada pela família aos 9 meses de idade, tem uma filha CODA (sigla em inglês para filhos ouvintes de pais surdos). “Eu sempre vi minha filha tocando piano. Uma vez, por curiosidade, fui até ela, coloquei minha mão no instrumento para sentir a vibração e nós tivemos essa conexão”, contou em entrevista à revista americana Vanity Fair. A atuação de Kotsur vem sendo aclamada pela temporada de premiações — ele já abocanhou as estatuetas do SAG Awards e BAFTA. Mas, antes de chegar a esse patamar de reconhecimento, enfrentou uma Hollywood que (ainda) não é lá muito aberta a atores com deficiência. 

Os muitos anos sendo rejeitado em testes por não conseguir falar tão bem e ser completamente surdo fizeram com que Troy Kotsur se acostumasse a receber nãos — mas, em momento algum, ele se resignou ou desistiu. O primeiro contato com a atuação surgiu ainda no ensino médio, quando ele foi encorajado por um professor a participar de um show de variedades e encenou uma pantomima (teatro gestual que praticamente não usa palavras). Inicialmente, almejava ser diretor de cinema, mas acabou desistindo da ideia por não se sentir conectado às pessoas. “Meu sonho de dirigir explodiu depois que aceitei o fato de viver em um mundo que não usava minha linguagem”, contou em entrevista ao jornal The Arizona Republic.

Emilia Jones, Troy Kotsur e Marlee Matlin no filme 'No Ritmo do Coração'
Emilia Jones, Troy Kotsur e Marlee Matlin no filme ‘No Ritmo do Coração’ (//Divulgação)

O caminho que escolheu trilhar, então, foi nos palcos. Formou-se na Gallaudet University em teatro e cinema e construiu grande parte de sua carreira graças ao seu envolvimento com a Deaf West Theatre, organização sem fins lucrativos que fica em Los Angeles e faz apresentações tanto com inglês falado como com a língua de sinais americana (ASL). O apoio da família não veio logo de cara. Para os pais, a carreira de ator era temporária — e, quanto mais ele insistia em atuar, mais seu pai e sua mãe ficavam temerosos. “Eu era teimoso e segui em frente, e eles estavam extremamente nervosos, mas sempre viam minhas peças e gostavam delas. Meus pais morreram, mas vou visitá-los no cemitério se por acaso ganhar algum prêmio. Vou mostrar a eles e dizer: ‘Ei, olhe para mim agora’”, disse em entrevista ao The New York Times. Para além do teatro, Kotsur, nascido no Arizona, Estados Unidos, já fez algumas pequenas participações em produções como a série CSI: NY, em 2006, e mais recentemente na superprodução do Disney+ The Mandalorian — algo especial para o ator, que é fã de Star Wars desde criança.

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Troy Kotsur em cena da série ‘The Mandalorian’, do Disney+ (//Reprodução)

A indicação ao Oscar como melhor ator coadjuvante foi um divisor de águas, especialmente pelo modo livre de estereótipos que o longa trata os personagens surdos. “Já passei por tanta coisa: problemas financeiros e opressão, pessoas que não estão prontas para trabalhar com um ator surdo. Com todo esse embate e trauma, sinto como se tivesse cortes em todo o meu corpo, e que finalmente cicatrizaram.”  No Ritmo do Coração, que estreou e logo foi premiado no Festival de Sundance, é um remake do filme francês A Família Bélier e só tem pessoas surdas dando vida a personagens surdos graças à insistência da atriz Marlee Matlin, que interpreta a mãe da família. Desde que Kotsur viu Matlin em Filhos do Silêncio, filme que rendeu à atriz surda o Oscar em 1986, ele quis trabalhar ao lado dela — assim como ela também quis atuar junto dele depois de assistir a várias de suas peças no Deaf West Theater, onde se conheceram.

A passos pequenos, Hollywood tem demonstrado mudanças significativas em relação à representação de pessoas surdas no cinema na última década. Aos 53 anos, Kotsur virou o símbolo de um filme que veio para encorpar a leva de produções protagonizadas por pessoas surdas, como a famosa franquia Um Lugar Silencioso e o indicado ao Oscar O Som do Silêncio. A despedida de seu personagem em No Ritmo do Coração foi difícil — ele diz que só saiu do papel de Frank Rossi depois de seis meses, quando raspou a barba. Agora, sua agenda está cheia de projetos. Atualmente, ele está trabalhando ao lado da esposa, Deanne Bray, que também é uma atriz surda, em um drama baseado em uma história real chamado Flash Before The Bang. Em um mundo dominado pela fala, Troy Kotsur prova que não são necessárias palavras para emocionar.

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