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Obras de Monteiro Lobato passam por atualização após acusações de racismo

Bisneta do autor, Cleo Monteiro Lobato escreve a VEJA sobre o processo de revisão dos livros do 'Sítio do Pica-Pau Amarelo'

Por Cleo Monteiro Lobato*
Atualizado em 4 jun 2024, 14h12 - Publicado em 27 nov 2020, 06h00

Há 100 anos, Monteiro Lobato (1882-1948) lançava seu primeiro livro infantil, A Menina do Narizinho Arrebitado. Foi a porta inicial que se abriu para o mundo mágico e popular da turma do Sítio do Picapau Amarelo, onde Narizinho, Emília, Pedrinho, o Visconde de Sabugosa, entre outros personagens, viveram aventuras extasiantes que ultrapassaram, e muito, as fronteiras da área rural em que a trupe fictícia vivia. Este foi o melhor e maior legado que o autor, que é meu bisavô, deixou: o poder de abrir a mente das crianças para o desenvolvimento do seu imaginário, criando a noção de possibilidades, de que com esforço conjunto existem soluções e de que tudo é possível. Esse legado é indelével, mas também não podemos ignorar as mudanças sociais ocorridas desde 1920.

Só tomei consciência de quem era meu bisavô quando tinha por volta de 13 anos, pois meu pai se tornou o representante legal da família e logo depois vieram os contratos com a TV, nos anos 70. Nasci Cleo Campos Kornbluh, filha de Joyce Campos, neta de Lobato, e do judeu polonês Jerzy Kornbluh, sobrevivente do Holocausto. Não tive de conviver com o peso do sobrenome de Monteiro Lobato na infância. Quando isso aconteceu, percebi que não era um fardo. Porém, senti uma necessidade de autoconhecimento, que me levou a mergulhar em sua vida e obra.

Os valores chamados “lobatianos” de pensar, de agir e de se posicionar eram constantes na família — e creio que ecoaram também entre seus leitores. Trata-se do gosto pela leitura, da capacidade de pensamento crítico, do amor à arte, ao desenho e à pintura e de uma imaginação e criatividade poderosas, além do empreendedorismo e do gosto por aventura. Adiciono ainda um maior entendimento da natureza, da oposição ao fanatismo, e da importância da educação.

Foi recentemente, após o falecimento do meu pai, em 2015, quando me inteirei dos assuntos relacionados a Lobato, que soube das acusações de racismo. No início, fiquei chocada, pois quem leu sua obra na minha geração não consegue entender como isso é possível, mas reli os livros e comecei a entender o porquê dessas queixas. Sou historiadora e imigrante (moro nos Estados Unidos há mais de vinte anos), experiência que me permitiu um distanciamento pessoal para analisar as acusações. Assim, digo: é preciso, primeiro, separar Lobato pessoa e Lobato escritor.

Para começar, é necessário contextualizar o momento histórico da época e depois colocar Lobato dentro do momento social em que viveu. Não há como negar que o Brasil foi um país colonizado e que os colonizadores escravizaram índios brasileiros e trouxeram ainda escravos africanos. Essa confluência de raças formou nosso país, nossa consciência, nossas estruturas sociais. E creio que esse cenário é retratado na escrita de Lobato. Essas estruturas têm evoluído à medida que os diferentes grupos sociais percebem a opressão do colonizador original branco e se voltam contra ela.

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Eu acreditava no mito de que no Brasil não existia preconceito racial, que somente existia preconceito econômico. Mas hoje entendo que o fim da escravidão e a parca incorporação do negro à sociedade resultaram em um cenário propício ao racismo estrutural, além da desigualdade econômica e educacional. E foi nesse contexto social de debate que, em 2019, as obras de Lobato caíram em domínio público, e diversas editoras e escritores resolveram editá-lo. A discussão de adaptar sua obra tomou vulto, e as acusações de racismo se multiplicaram.

“Frases inadequadas foram mudadas, assim como a representação de alguns personagens”

Entre 2000 e 2010 houve uma ação contra o livro Caçadas de Pedrinho, em que o acusavam de ser racista. Ação esta que resultou na decisão de colocar em catálogo que o livro deveria ser mediado por um adulto. Ao reler os livros, concordei com a decisão. As obras infantis de Lobato contêm expressões, frases e descrições que não podem passar, mas que servem para a abrir a discussão sobre o preconceito, entre outros temas. Não há mais espaço para piadas racistas, homofóbicas ou misoginistas. Para mim, não adiantava mais dizer apenas que eu não era racista, eu precisava me posicionar como antirracista. Por isso decidi manter o legado de Lobato vivo, e atualizá-lo para as próximas gerações.

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Junto com a editora Nereide Santa Rosa, da Underline Publishing, optamos por relançar as obras de forma atualizada. O primeiro a passar por essa edição, que já está nas lojas e vai ganhar tradução em inglês em dezembro, é justamente Narizinho Arrebitado. O texto está lá, praticamente por inteiro, mas frases inadequadas foram mudadas, assim como a representação de alguns personagens. A popular Tia Nastácia foi modificada cirurgicamente. Retiramos todas as frases que consideramos de cunho preconceituoso, além de dar-lhe uma injeção de “orgulho” através de um novo visual criado pelo ilustrador Rafael Sam. Vale ressaltar que também sou a favor da leitura do texto original, com o uso de notas de rodapé, prefácio e posfácio explicativo — assim, em vez de censurar, abrimos sua obra para debate.

Faço isso, pois, no fundo, ao me aprofundar mais na vida pessoal de meu bisavô através das memórias de minha mãe, Joyce, que conviveu com ele, percebi que Lobato realmente não foi uma pessoa com atitudes racistas. Quando ficou preso por três meses em 1941, por criticar a ditadura do Estado Novo, e sem tratamento especial, ele ficou amigo de todos os presos e rapidamente começou a dar aulas de português, história e geografia, e ensinou a ler e a escrever. À medida que os presos eram soltos, ele escrevia um bilhete com recomendações para que amigos ajudassem o tal preso a arranjar emprego. Não é necessário dizer que os presos, em sua maioria, eram negros, já evidenciando que no Brasil existe e sempre existiu um preconceito estrutural profundo: quem é negro vai para a prisão mais facilmente do que quem é branco. Tem uma citação que diz “viver com igualdade é saber respeitar as diferenças. Respeito não tem cor, tem consciência”. Acredito que essa era a verdade interna do meu bisavô. E esse respeito do outro como ser humano foi passado através das gerações e faz parte da minha essência.

* Cleo Monteiro Lobato é historiadora e curadora do novo projeto de livros atualizados do bisavô

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Publicado em VEJA de 2 de dezembro de 2020, edição nº 2715

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