Assine VEJA por R$2,00/semana
Continua após publicidade

O retorno dos faraós: fascínio do mundo pelo Egito Antigo é reaceso

Um desfile de reis e rainhas, a abertura de um museu e a descoberta de uma cidade perdida no deserto renovam interesse pelo tema

Por Sergio Figueiredo Atualizado em 16 abr 2021, 13h01 - Publicado em 16 abr 2021, 06h00

“Do alto destas pirâmides quarenta séculos vos contemplam”, teria dito o ainda jovem general Napoleão Bonaparte às suas tropas na campanha para conquistar o Egito e bloquear rotas de comércio inglesas no Mar Vermelho. Não se sabe se a frase é apenas parte da lenda que cerca o imperador da França, mas é certo que ele foi a força motriz da egiptologia, pois, na invasão de 1798, além de soldados, ele trouxe consigo historiadores, botânicos, engenheiros e geógrafos que impulsionaram a arqueologia moderna. Hoje, mais de dois séculos após a incursão napoleônica, a um ano do bicentenário da façanha do lexicógrafo francês Jean-François Champollion, que em 1822 decifrou a milenar escrita egípcia, e a um ano do centenário da descoberta da tumba de Tutancâmon pelo britânico Howard Carter, o mundo se rende novamente às maravilhas do Egito Antigo: os faraós da era de ouro estão de casa nova, o Museu Nacional da Civilização Egípcia, e uma cidade perdida com mais de 3 300 anos de idade acaba de emergir das areias do deserto.

A GRANDE PARADA - Procissão de múmias: a caminho da nova morada -
A GRANDE PARADA - Procissão de múmias: a caminho da nova morada – (Khaled Desouki/AFP)

Os artefatos e monumentos da civilização egípcia — que todos os anos atraem milhões de turistas, ansiosos para vê-los de perto — constituem a herança material de uma sociedade cuja cultura moldou a humanidade. Encravado no nordeste da África e cercado por desertos, o Egito deve sua existência ao Nilo, rio de 6 650 quilômetros de extensão que deságua no delta do Mar Mediterrâneo. Às margens dele, floresceram cidades independentes que, com o passar tempo, seriam unificadas sob o poder de uma única “casa grande” — significado original da palavra faraó. Como os antigos escribas recomeçavam a contagem dos anos toda vez que um novo rei assumia, é impossível afirmar o exato ano em que o estado-nação surgiu, mas egiptólogos costumam afirmar que teria sido por volta de 3100 a.C., sob o cetro do rei Menés, o primeiro a ostentar os símbolos do Alto e do Baixo Nilo. Este, porém, não é o período mais chamativo para quem gosta de múmias, sarcófagos e pirâmides — ou seja, a maioria das pessoas.

BELEZA FUNDAMENTAL - O busto de Nefertiti: encantamento milenar -
BELEZA FUNDAMENTAL - O busto de Nefertiti: encantamento milenar – (Tritschler/ullstein bild/Getty Images)

O interesse está mais voltado para outras épocas, como o Antigo Reino, entre 2600 a.C. e 2500 a.C., quando os reis Khufu, Khafre e Menkaure (mais conhecidos pelos nomes gregos Quéops, Quéfren e Miquerinos) ergueram as três grandes pirâmides cujo formato parece apontar energias aos céus. Já que os faraós eram a autoridade constituída para se comunicar com os deuses, construir mausoléus colossais era uma forma de honrar as divindades, a si mesmos e, segundo eles próprios, também a nação. As pirâmides do planalto de Gizé, perto da atual capital, Cairo, são a prova da capacidade de realização de um povo que, além de dominar a escrita e a agricultura, sabia fazer sofisticados cálculos de engenharia, e tinha uma crença dogmática na vida após a morte.

Continua após a publicidade
CIDADE PERDIDA - Relíquias inestimáveis: trazidas à luz depois de 3 300 anos -
CIDADE PERDIDA - Relíquias inestimáveis: trazidas à luz depois de 3 300 anos – (Khaled Desouki/AFP)

Os súditos, depois da passagem, até tinham direito a algum processo de embalsamamento para fazer a travessia do vale das sombras, mas somente os faraós recebiam o tratamento digno de um emissário dos deuses. Depois da morte, os órgãos — cérebro e vísceras — eram retirados e separados em receptáculos. O corpo era limpo, drenado, desidratado, estufado com tecido, fechado e besuntado, de forma a estar pronto para o além-vida. As bandagens eram de linho de primeira qualidade, acessível somente às classes abastadas. Junto com o soberano, eram enterrados bens pessoais, armas, tesouros e o que mais ele achasse que viria a precisar quando estivesse na presença dos deuses.

TUTANCÂMON - Howard Carter: o maior achado arqueológico do século XX -
TUTANCÂMON – Howard Carter: o maior achado arqueológico do século XX – (Mansell/The LIFE Picture/Getty Images)

A fé inabalável em tais ritos funerários permitiu que muitos dos mumificados faraós do Novo Reino, que viveram entre 1550 a.C. e 1050 a.C. — portanto, mais de um milênio depois da construção das grandes pirâmides —, chegassem aos nossos dias com o corpo razoavelmente preservado. As múmias de dezoito reis e quatro rainhas, encontradas no Vale dos Reis, a oeste da cidade de Luxor, e que estavam guardadas no Museu Egípcio, no Cairo, desde 1902, foram recentemente transportadas, em desfile com pompa e circunstância, para o novo prédio do Museu Nacional. A sofisticada instalação, fundada em 2017 e aberta ao público no último 3 de abril, terá uma ala exclusiva dedicada à realeza, a ser inaugurada no próximo dia 18. Os soberanos do Novo Reino, se estivessem vivos, ficariam satisfeitos com a deferência prestada a eles: na Parada Dourada dos Faraós, cada invólucro, preenchido com nitrogênio para evitar aceleração na decomposição das múmias, foi conduzido em carros à prova de solavancos, ao som de orquestra filarmônica, presença de celebridades locais, muita luz e brilho.

Continua após a publicidade

A impressionante procissão ganhou relevância ainda maior com a presença de Ramsés II, lendária figura que reinou por 67 anos entre 1279 a.C. e 1213 a.C. Guerreiro admirável e realizador de grandes obras, ele pode ter sido o faraó que tentou impedir a fuga dos hebreus, liderada por Moisés, conforme descrito no Velho Testamento. No entanto, o desfile ganharia proporções piramidais se estivessem também presentes as múmias de Aquenáton, que implementou o monoteísmo no Egito com a adoração ao rei-sol Aton, e de sua mulher, Nefertiti, cujo nome é sinônimo de beleza. Ao contrário dos demais soberanos, localizados e exumados no fim do século XIX, a múmia de Aquenáton só seria descoberta em 1907 e demorou quase 100 anos para ser confirmada como sendo mesmo do faraó monoteísta. Já os restos mortais de Nefertiti, até onde se sabe, jamais foram encontrados, e a melhor imagem que se tem dela advém de um busto descoberto em 1912 e que hoje é peça de destaque do Museu Novo, em Berlim. Outra ausência sentida, e talvez a mais relevante, é a do lendário Tutancâmon, cuja tumba foi descoberta em 1922. Sua múmia é mantida preservada em uma câmara especial e dali só deve sair para sua morada definitiva, ainda em construção em Gizé. Até hoje, apesar dos avanços da análise de DNA, pesquisadores buscam a prova definitiva de que o faraó-menino (assim chamado por ter morrido aos 19 anos, por volta de 1325 a.C.) é filho de seu antecessor, Aquenáton.

O que está acima de qualquer discussão é o momento oportuno escolhido para divulgar a nova morada dos faraós. O desfile, aparentemente extemporâneo em plena pandemia, foi, na verdade, a propaganda preliminar de uma extraordinária descoberta da qual as autoridades egípcias já tinham conhecimento desde setembro de 2020, mas que veio à tona somente na semana passada — não por coincidência, logo depois da repercussão internacional da Parada Dourada dos Faraós. Trata-se de uma cidade perdida na qual foram encontrados utensílios domésticos, cerâmicas e restos mortais de egípcios que viveram ali nos anos 1300 a.C., no reinado de Amenófis III, pai do monoteísta Aquenáton. Apelidado de Pompeia do Egito, em referência à cidade italiana paralisada no tempo pelo vulcão Vesúvio, o novo sítio arqueológico, que não fica distante do Vale dos Reis, tem relíquias suficientes para preencher um novo museu: “É a mais importante descoberta desde o túmulo de Tutancâmon”, enfatiza o arqueólogo-chefe da escavação, o egípcio Zahi Hawass. Ainda não foi esclarecido como a localidade ficou fora do mapa por tanto tempo, mas ela desapareceu muito antes de seus descendentes testemunharem a ruína do império, que acabou sucumbindo a invasões estrangeiras, principalmente persas. A estabilidade só seria restabelecida com a chegada de Alexandre Magno em 332 a.C. O grande conquistador macedônio expulsou os persas e devolveu a autonomia ao Egito, sob os auspícios de seu general Ptolomeu, que fundaria uma dinastia de três séculos, tendo Cleópatra VII, a rainha eternizada, como sua maior e derradeira representante. Cleópatra conquistou o coração de dois romanos, Júlio César e Marco Antônio, mas não conseguiu evitar seu próprio fim. “Toda glória é passageira”, talvez dissesse o general americano George Patton, que lutou na II Guerra Mundial, 130 anos depois das Guerras Napoleônicas. A glória realmente é finita. Mas, em contrapartida, não pode ser apagada da história.

Publicado em VEJA de 21 de abril de 2021, edição nº 2734

Publicidade

Matéria exclusiva para assinantes. Faça seu login

Este usuário não possui direito de acesso neste conteúdo. Para mudar de conta, faça seu login

Domine o fato. Confie na fonte.

10 grandes marcas em uma única assinatura digital

MELHOR
OFERTA

Digital Completo
Digital Completo

Acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

a partir de R$ 2,00/semana*

ou
Impressa + Digital
Impressa + Digital

Receba Veja impressa e tenha acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

a partir de R$ 39,90/mês

*Acesso ilimitado ao site e edições digitais de todos os títulos Abril, ao acervo completo de Veja e Quatro Rodas e todas as edições dos últimos 7 anos de Claudia, Superinteressante, VC S/A, Você RH e Veja Saúde, incluindo edições especiais e históricas no app.
*Pagamento único anual de R$96, equivalente a R$2 por semana.

PARABÉNS! Você já pode ler essa matéria grátis.
Fechar

Não vá embora sem ler essa matéria!
Assista um anúncio e leia grátis
CLIQUE AQUI.