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‘O racismo é um espírito demoníaco’, diz atriz de ‘Lovecraft Country’

Em entrevista a VEJA, Jurnee Smollett fala sobre a série da HBO e como optou pela arte como forma de resistência

Por Mariane Morisawa
Atualizado em 25 ago 2020, 16h09 - Publicado em 24 ago 2020, 09h51

Jurnee Smollett era uma garotinha de 6 anos de idade quando apareceu pela primeira na televisão, na sitcom Out All Night. Ela fez trabalhos interessantes desde então, incluindo bons papeis em séries de quilate como Friday Night Lights e True Blood. Mas 2020 está sendo especial. Ela foi a Canário Negro em Aves de Rapina, ao lado de Margot Robbie. E agora vive Letitia Lewis, a Leti, em Lovecraft Country, a série da HBO criada por Misha Green e produzida por Jordan Peele, o homem por trás de Corra! e Nós. Exibida aos domingos, às 22h, a trama é baseada no livro de Matt Ruff, que utiliza o terror, a ficção científica e a fantasia criadas pelo escritor H.P. Lovecraft para falar do racismo dos Estados Unidos na década de 1950, quando parte do país vivia sob as leis de segregação conhecidas como Jim Crow.

Atticus (Jonathan Majors), veterano da Guerra da Coreia, retorna para sua Chicago de origem, onde descobre que seu pai, Montrose (Michael Kenneth Williams, de The Wire) está desaparecido. Junto com seu tio George (Courtney B. Vance) e sua amiga de infância Letitia (Smollett), parte em busca de Montrose, enfrentando monstros humanos e literais em sua viagem. Letitia é uma fotógrafa que acabou de chegar a Chicago, é ativista pelos direitos civis e cheia de vida. Jurnee Smollett conversou com o site de VEJA sobre a série, uma das melhores da temporada, racismo, raiva ancestral e empoderamento feminino.

Lovecraft Country mistura o horror da América real com o horror dos contadores de histórias americanos, como o escritor H.P. Lovecraft, que era extremamente racista. Qual é a sua opinião sobre isso? Pois é, como você concilia essas duas coisas? Acho que essa é a tragédia de nossa nação. O racismo é um espírito demoníaco. E ainda temos que nos curar realmente disso. Ainda temos que desmantelar verdadeiramente esse racismo sistêmico. E então aqui nos encontramos fazendo uma história que é muito ancestral, basicamente sobre nossos heróis derrubando a supremacia branca. O branco aqui não tem só o poder, tem a magia também. Mas somos mágicos. Portanto, nossos heróis estão envolvidos em uma guerra espiritual.

Acha que é interessante falar de racismo e preconceito usando gêneros como a ficção científica e o terror? Sim, uma das coisas mais fascinantes para mim foi essa releitura radical da história e desses gêneros. Sou fã de ficção científica, terror e suspense. Adoro Star Wars e me lembro de ter visto O Silêncio dos Inocentes quando eu tinha 10 anos. Tive de dormir com minha irmã aquela noite! Mas, como artista, me sinto excluída desses gêneros dos quais sou fã, porque muitas vezes você recebe a proposta de ser a garota negra que morre na página 36. É frustrante. Então uma das coisas mais empolgantes de Lovecraft Country é que todos nós nos reunimos para fazer arte de protesto.

Uma das coisas mais empolgantes de ‘Lovecraft Country’ é que todos nós nos reunimos para fazer arte de protesto

Jurnee Smollett

Na série podemos ver alguns monstros humanos verdadeiramente horríveis, como aqueles que perseguem vocês no primeiro episódio, para fora da cidade. É uma cena muito tensa. Mas também há alguns monstros mais lovecraftianos. Existe uma conexão entre esses dois tipos de monstros? Eu tenho mais medo dos monstros humanos porque é um sistema maior para combater do que um Shoggoth, que provavelmente vai arrancar sua cabeça. Há outros monstros mais opressivos do que um Shoggoth, e você nunca sabe de onde eles estão vindo. A genialidade desta história, do livro, da forma como Misha aborda, é que estamos explorando os demônios sombrios de nossa nação de uma forma muito pouco ortodoxa. É quase como se estivéssemos entrando na mente de H.P. Lovecraft. E aí, infelizmente, é preciso lutar contra os demônios que existiam lá também, os monstros humanos e racistas.

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Letitia é uma personagem muito forte. Ela é independente, destemida. O empoderamento feminino é algo muito presente na série, mais do que no livro, não? Sim, Leti é uma força da natureza. Ela é uma mulher cheia de vida que parece um tornado por onde passa. Escolhe muito conscientemente fazer exatamente o que não deveria. Em vez de fugir do perigo, ela vai ao encontro dele. Acho que é um sintoma do fato de ser mulher e negra na América nos anos 1950 e ter a sensação de estar sendo apagada. Ela sofre de deslocamento, e é por isso que deixa sua casa em busca de um lar. Ela quer renascer. Como James Baldwin fala, muitos negros americanos ficam em choque ao perceber que seu país de nascimento não criou um lugar para eles. Leti está tentando apenas lutar por seu próprio espaço.

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Se inspirou em alguém para interpretá-la? Na minha avó, que era uma bela mulher. Ela foi a primeira Miss Galveston negra e criou quatro filhos sozinha limpando casas de brancos em Nova Orleans. Quando era criança, eu ouvia as histórias da dignidade que minha avó lutou para manter, apesar de sua própria opressão. A caminhada diária, a luta diária, para sair dessa. Isso sempre ficou comigo. Ela ia trabalhar todos os dias com suas roupas bem passadas e o cabelo arrumado para limpar as casas dos outros sabendo que eles iriam maltratá-la. Mas era um ato muito radical, como se sua própria existência fosse um ato radical. E quando penso em mulheres como minha avó, ou (a escritora) Lorraine Hansberry ou (a tenista) Alfia Gibson, penso na memória de sangue que temos, essa conexão profunda com a opressão de nosso povo. E você sente a responsabilidade de ser. Apenas ser. Ser completamente o seu ser, ser totalmente autêntica – isso em si é radical. Essa é a essência de Leti. Sim, ela é desafiadora. Sim, ela é disruptiva. E, sim, ela está em busca de sua tribo. Mas há tanta raiva naquela memória de sangue, sabe? É o combustível que a alimenta.

Jurnee Smollett, Jonathan Majors e Courtney B. Vance são Letitia, Atticus e George na série ‘Lovecraft Country’ (//Divulgação)

Leti obviamente tem de  lidar com a vida em uma sociedade racista e patriarcal. Como você enfrenta esses monstros gêmeos sendo uma mulher negra na América hoje? Sim, esse é um bom ponto porque o patriarcado se beneficia da supremacia branca, e a supremacia branca se beneficia do patriarcado. Um não pode existir sem o outro. E, como mulher negra, é uma luta diária. Tenho a bênção de ser a filha de minha mãe. Minha mãe é lutadora, resistente, forte. Quem conhece minha mãe não fica no caminho dela. E então um dos maiores presentes que ela me deu foi simplesmente não me desculpar por quem eu sou. Sou alguém que vive na interseção de múltiplas identidades e, como artista, tenho lutado para não deixar que isso me impeça de prosperar. Mas é uma batalha, sabe? É uma batalha.

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É ainda difícil para uma mulher negra ter espaço? De 2007 a 2019, apenas 1% dos filmes foram dirigidos por mulheres não-brancas. Isso é absurdo. Mas no meu caso tive uma introdução muito interessante ao cinema. Comecei ainda criança, e meu segundo filme (Amores Divididos, de 1997) foi dirigido por Kasi Lemmons, um negra com longos dreads, e a diretora de fotografia era Amy Vincent, uma mulher branca. Brilhantes, as duas. Na minha cabeça, essa era a minha norma, então todo o resto é um pouco anormal para mim. Por isso tem sido essa luta para não contribuir para a degradação do corpo feminino negro nas narrativas. Mas não é fácil. Só que adoro contar histórias, amo o que faço e sinto-me encorajada porque há pessoas como Misha Green, Gina Prince-Bythewood (The Old Guard), Ava DuVernay (Selma), Cathy Yan (Aves de Rapina). Muitas das minhas irmãs negras e não-brancas estão atrás das câmeras e assumindo o controle de histórias e gêneros como Lovecraft Country. E apenas dizendo: chega. Não seremos mais excluídas. Merecemos estar no centro dessas histórias, e, na verdade, todos vão gostar também.

O verdadeiro horror na série é o medo do outro. Como essa ideia muda você como pessoa? Eu acho que esse é um ponto muito importante. Essencialmente, com qualquer opressão, aqueles que estão no poder são ignorantes sobre o outro e temem o outro. Tudo se resume ao medo do desconhecido. Eu acho que é o nosso trabalho, como artistas: pegar essas histórias universais e colocá-las em circunstâncias muito únicas, com mundos muito específicos e personagens específicos que talvez o mundo não tenha visto. E acho que é por isso que, como seres humanos, amamos contar histórias. Somos capazes de usar esses personagens como nossos avatares. E aprendemos mais sobre a humanidade contando histórias.

É por isso que é artista? Sim, é isso que me move como artista, expandir o escopo de quem somos como pessoas e ajudar a entender a humanidade em um nível mais profundo. Porque você está certo, a opressão, o racismo sistêmico e o patriarcado vêm dessa ignorância, do medo do desconhecido. A arte pode ser uma ferramenta muito perigosa, que alimenta essa ignorância. Ou pode ser uma ferramenta que quebra essas barreiras e estereótipos e mostra como somos todos de carne e osso. Todos nós queremos as mesmas coisas na vida.

Você mencionou o passado ancestral. Na série, sua personagem, tio George e Atticus vão atrás de um passado familiar, que é algo negado a muitos afro-americanos e negros brasileiros também. Qual a importância de resgatar isso e também o passado do país, de certa forma, para talvez encontrar alguma forma de cura? Sim, eu procurei muitos artistas que tão lindamente documentaram a vida cotidiana na América negra, como Gordon Parks. Mas também, como tinha dito, Lorraine Hansberry e James Baldwin, que estavam tão cientes da desgraça que nossa nação continuamente fez apagando nossa história. Esta é uma batalha contínua para nós até hoje. Sabemos que nossas histórias não são contadas com precisão, nos livros de história, livros didáticos no ensino médio. Como artista, acho que posso ajudar a expandir o olhar e dar voz a tantas almas sem voz que foram esquecidas na história. Nossa nação foi construída por nosso povo. No entanto, muitas vezes parece que nossa nação deseja apagar esse fato. Mas não vamos deixar isso acontecer.

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Há um momento na série em que você tem a chance de extravasar sua raiva, com violência. Foi uma cena difícil de filmar? (Atenção, pequeno spoiler) Bem, eu vi uma cruz queimando na p**** do meu gramado, ok? Então é aí que entra a memória do sangue, e essa vibração visceral através do meu corpo aconteceu. E trouxe à tona essa raiva em mim que é difícil de descrever. É como uma raiva histórica. Uma raiva ancestral. Eu me machuquei naquela cena. Minhas mãos estavam ensanguentadas, e eu nem senti. E não é exagero. Sou o tipo de artista que joga todo o meu corpo nessas coisas. E então eu não me importo com o sacrifício que isso exige. Lovecraft Country com certeza custou muito artisticamente, criativamente, emocionalmente, espiritualmente. Mas todos nós estávamos muito conscientes. A verdade é que esta história é muito maior do que uma pessoa. Então é necessário se dedicar totalmente para servir ao projeto.

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