O Lobo de Wall Street é a mais eletrizante parceria entre DiCaprio e Scorsese
O quinto encontro do ator e do diretor resultou num filme explosivo — e em indicações ao Oscar para ambos
As indicações
- Melhor filme
- Melhor diretor
(Martin Scorsese)
- Melhor ator
(Leonardo DiCaprio)
- Melhor ator coadjuvante
(Jonah Hill)
- Melhor roteiro
adaptado
Como trainee em Wall Street, Jordan Belfort, 22 anos, casado com uma cabeleireira e recém-chegado a Nova York, fica com os olhos brilhando quando ouve falar dos bônus que os corretores tiraram no último ano – 300 000 dólares um, 1 milhão de dólares outro. Então vem o 19 de outubro de 1987, a “Segunda-Feira Negra”. A bolsa de Nova York despenca mais de 500 pontos em um só mergulho, a empresa em que Jordan trabalha vai à falência, e ele perde o emprego que acabou de ganhar. E, no entanto, quatro anos depois ele vai estar jogando dinheiro fora. Sem brincadeira, jogando-o fora: amassando notas de 100 e arremessando-as no lixo, atirando-as pela balaustrada do seu iate em cima dos agentes federais que tentou subornar, torrando-as com prostitutas. E também em quantidades de pó, barbitúricos e álcool que derrubariam um cavalo, em uma Ferrari branca, em orgias diárias no escritório (de novo, sem brincadeira: orgias mesmo, na acepção da palavra), em uma mansão gigantesca, ou em um diamante de noivado do tamanho de um Polenghinho para a amante, Naomi – uma vida assim veloz requer um modelo mais esportivo de mulher, claro, e Naomi (Margot Robbie), além de loira e estatuesca, tem competências que só em profissionais Jordan encontrou antes. Não há descrição dos feitos (e incontáveis malfeitos) de Jordan, porém, que dê conta da eletricidade e da potência de O Lobo de Wall Street (The Wolf of Wall Street, Estados Unidos, 2013), que estreia nesta sexta-feira no país com cinco indicações ao Oscar.
Esta é a quinta parceria entre Leonardo DiCaprio e o diretor Martin Scorsese, e de longe a mais explosiva, arriscada e infernalmente divertida de todas – uma demonstração de que certas colaborações precisam atravessar uma fase de estabilidade e até de separação temporária para atingir a etapa seguinte, a da absoluta confiança mútua que um filme como esse requer. Durante as três horas que essa adaptação das memórias de Jordan toma, DiCaprio sustenta um nível de energia exaustivo e faz coisas que ninguém sonhou vê-lo fazer antes, muitas delas impublicáveis. Um resumo editado: DiCaprio fala barbaridades (no linguajar que usa e na amoralidade do que diz), seja dentro da cena, seja dirigindo-se diretamente ao espectador ou em voice over – um recurso típico de Scorsese. Arrasta-se pelo chão tentando entrar na sua Ferrari, trincado demais com Mandrix para se pôr de pé, levando a plateia às gargalhadas. Faz gestos de obscenidade inacreditável – como na cena em que ensina o pessoal da firma a vender papéis que não valem nada a clientes otários (ou como em outras cenas de que as fotos destas páginas dão uma pista). Não tem, enfim, medida nem barreira. E, todo o tempo, Scorsese não só paga a aposta como joga mais fichas na mesa a cada rodada, exibindo vitalidade comparável à de Os Bons Companheiros, de 1990, e que na fase mais recente de sua carreira só em Os Infiltrados (sua terceira parceria com DiCaprio) ele esteve perto de igualar. Essa exuberância já está provocando certa grita: para alguns (por exemplo, os coitados que Jordan arruinou com suas tramoias financeiras), há algo de indecente em cativar de tal maneira o público com um personagem tão abjeto.
Personagens abjetos, contudo, são uma das matérias-primas – a mais valiosa, talvez – de que Scorsese fez sua carreira. Do violento e desequilibrado Travis Bickle de Taxi Driver aos mafiosos de Os Bons Companheiros e Cassino, ou os gângsteres e os policiais corruptos de Os Infiltrados, o diretor teve sempre uma atração pelos bottom feeders, como se diz em inglês – os que se alimentam do lodo, do que é sórdido e podre. E Jordan Belfort não é outra coisa senão uma dessas figuras. Depois de perder o emprego em Wall Street, ele foi parar em um estabelecimento de porta dos fundos e práticas duvidosas em Long Island. Em um mecanismo que Scorsese explica muito bem, o que as grandes firmas de Wall Street vendem são as ações “blue chip”: os papéis valorizadíssimos que só gente grande compra, e que rendem ao corretor comissão de 1%. Já o que os corretores suados e amarrotados de Long Island estavam vendendo eram as “pink sheets”: papéis de empresas tão obscuras, ou medíocres, ou sem futuro, que nem chegam a entrar na cotação. As “pink sheets” valem centavos, mas rendem comissão de 50% – porque é preciso premiar o corretor que empurre esse bagaço para alguém (em geral gente com pouquinho dinheiro, muita ilusão e zero de informação). Jordan descobre que nasceu para isso: mente com volúpia, convence qualquer um de qualquer coisa e faz chover sobre si o dinheiro que rouba de sua clientela ingênua de carteiros, motoristas de ônibus e operários. E daí imagina: e se conseguisse vender essa papelada inútil para os peixes grandes? Inventa uma empresa de nome pomposo – Stratton Oakmont -, associa-se a um sujeito sem nenhum caráter (o enlouquecido Donnie Azoff interpretado por Jonah Hill), chama uns amigos escusos para se juntar a ele e, aos 26 anos, já comprou a mansão, o iate, o helicóptero e a segunda mulher. E já vendeu a alma também, com muito gosto e sem arrependimento.
Graças a um levantamento realizado pela revista Variety, sabe-se que O Lobo de Wall Street é o filme recordista no uso de um certo palavrão: são 506 f***s em duas horas e 59 minutos de projeção, ou 2,8 por minuto. Parte deles é dita em clima de euforia, quando o dinheiro está entrando a rodo. Outra parte é dita em estado de desespero, quando um agente do FBI (Kyle Chandler, excelente) detecta a vastidão da maracutaia em que está envolvida essa falsa firma de respeito, prende o banqueiro suíço da turma (Jean Dujardin, de O Artista) e encosta Jordan e seus associados na parede. Joel M. Cohen, um dos promotores que durante meses interrogaram Jordan Belfort, escreveu no The New York Times que o personagem que viu no filme é, em certo sentido, exatamente aquele que conheceu: mentiroso, mitômano, megalomaníaco, covarde e muito bem-sucedido em vender ao mundo (e, por extensão, a cineastas e atores, insinua Cohen) uma versão épica de sua canalhice. Há espaço aí para uma dúvida: Scorsese se deslumbrou e deixou tapear pelo vigarista – ou tão somente se deslumbrou com o poder de um vigarista de tapear? As evidências favorecem a segunda hipótese: grandes fraudadores, da mesma forma que os mafiosos e agentes da lei corruptos que o diretor tantas vezes retratou, moram no lado escuro da terra das oportunidades e são a excrescência que às vezes brota de uma grande qualidade americana, o empreendedorismo. Se há um filme recente que se alinha com o de melhor que Scorsese fez no passado, portanto, é este aqui, sobre lobos que nem sequer se dão ao trabalho de vestir pele de cordeiro.
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