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O amor do inimigo

O conflito entre árabes e israelenses inspirou grande literatura

Por José Francisco Botelho
Atualizado em 11 jan 2019, 07h00 - Publicado em 11 jan 2019, 07h00

“A boa literatura só se torna universal quando é provinciana”, disse certa vez o romancista e ensaísta israelense Amós Oz — que morreu em dezembro de 2018 sem receber o merecido Prêmio Nobel. Nascido em Jerusalém, na época do mandato britânico, Oz encontrou o universo nos becos estreitos, nas colinas espinhentas e nos muros milenares de seu torrão natal. A Cidade Santa foi sua Macondo: ele a povoou com os dilemas de imigrantes, refugiados e sobreviventes do Holocausto, em romances e contos ambientados na juventude do Estado judeu. Oz tinha sólidas credenciais sionistas: mudou-se para um kibutz aos 15 anos e lutou em duas guerras contra os árabes. Ainda assim, foi acusado de traição por alguns conterrâneos — entre outras coisas, por defender a solução de dois Estados para o conflito entre Israel e os palestinos. Não por acaso, a filosofia da traição é tema recorrente em suas obras. Em Pantera no Porão (1995), romance inspirado na infância do autor, um menino envolvido com a militância sionista trava uma amizade perigosa com um sargento britânico — na época, os ingleses, e não os árabes, eram vistos como os grandes rivais do embrionário Estado de Israel. Sem renunciar à causa de seus ancestrais, o personagem de Oz encontra uma espécie de transcendência no amor pelo inimigo: “Será que pode existir no mundo alguma traição que não seja cínica? Que não seja interesseira e calculista? Será que existe um traidor que não seja infame? Hoje penso que existe”.

Misteriosos são os caminhos da literatura: a dúvida do jovem sionista ecoaria, três anos depois, no mais grandioso romance jamais escrito sobre a história palestina — Porta do Sol (1998), do libanês Elias Khoury. No campo de refugiados de Chatila, no Líbano, o enfermeiro Khalil tem uma longa conversa metafísica com seu paciente comatoso, o veterano palestino Yunis Ibrahim. Pela força do diálogo que talvez seja monólogo, Khalil tenta ressuscitar a consciência do amigo moribundo, entretecendo epopeias de nômades involuntários e cobrindo três décadas de diáspora palestina. Não é um livro sobre heroísmo, mas sobre o desterro: suas ilusões, seus enganos, suas eventuais grandezas e inevitáveis traições. “Os homens são assim desde que Deus criou Adão”, Khalil diz a Yunis, a certa altura. “Um homem, cedo ou tarde, acaba traindo aqueles que ama. Se os trai, é porque os ama, então qual o problema?” Herdeiro de Xerezade, Khalil conta histórias não apenas para postergar a morte, mas para deter as marés do absurdo; e a narrativa que constrói é um dos mais intensos relatos do século XX.

No conto Os Teólogos, de Jorge Luis Borges, dois inimigos irreconciliáveis encontram-se no paraíso e descobrem que, aos olhos de Deus, são o mesmo homem. Amós Oz e Elias Khoury encamparam lados opostos de um conflito talvez infinito e sonharam com uma paz que não veio, que talvez não venha jamais. A grandeza de suas obras não resolve, mas de certa forma justifica, a grande batalha perdida.

Talvez não haja redenção na história, mas há na literatura.

Publicado em VEJA de 16 de janeiro de 2019, edição nº 2617

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