Nova tradução reafirma brilho de ‘Anna Kariênina’, do russo Tolstói
Edição atesta a atualidade magistral do escritor — e também de sua personagem, tão extraordinária quanto infeliz

“Que mulher espantosa, gentil e digna de pena”, pensa Konstantin Lióvin após conhecer finalmente Anna Kariênina. O encontro causara-lhe grande impressão, e Lióvin arremata o comentário a seu amigo — e irmão de Anna — Stepan Oblônski, sublinhando a última impressão deixada por aquela mulher extraordinária: “Tem um coração espantoso. Dá uma pena terrível!”. Como todo leitor de Anna Kariênina acaba sabendo, Lióvin é o alter ego do próprio autor russo Lev Tolstói. É impossível não sair da leitura das páginas em que a protagonista e o personagem que faz as vezes de escritor travam contato sem ao menos considerar que essa é a opinião de Tolstói: Anna Kariênina, sua heroína, é uma mulher extraordinária e infeliz, e seu sofrimento move o leitor na direção do espanto, da empatia, da compaixão — não da censura.
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Fluente e segura, a nova tradução que os leitores brasileiros agora têm à disposição, assinada por Irineu Franco Perpetuo, é uma excelente oportunidade para novos e antigos leitores vivenciarem o romance de Tolstói — saudado por seus pares escritores desde o momento de seu lançamento até nosso tempo. O alemão Thomas Mann julgava tratar-se do “romance social mais poderoso de todos os tempos”, como se pode ler no prefácio; o francês Guy de Maupassant foi taxativo em sua reação ao livro: “Ninguém consegue escrever assim”. Não por acaso um crítico da envergadura de George Steiner reputava Tolstói como o Homero dos tempos modernos. Um Homero capaz de entregar a seu público, logo após o monumental épico Guerra e Paz (1869), um dos mais argutos e complexos romances sobre os abismos psicológicos e emocionais das relações amorosas, as dinâmicas da instituição do casamento em uma sociedade tradicional submetida à modernização e as implacáveis regras da vida social na Rússia czarista.

Já a abertura do romance de 1877, uma das mais célebres da literatura universal, lança o leitor nesse entrecruzamento entre dramas individuais, relações familiares e vida social: “Todas as famílias felizes são parecidas, cada família infeliz é infeliz a seu próprio modo”. Conduzidos pela mão sensível de Tolstói, testemunhamos a “confusão na casa dos Oblônski”, em Moscou: o adultério de Stepan abala a harmonia no casamento com Dolly, e o narrador habilmente faz coincidir com essa cena inaugural do romance as entradas de seus personagens decisivos. Lióvin, amigo de longa data do marido adúltero, dirigira-se a Moscou, deixando sua propriedade rural, com o propósito de pedir em casamento a mão de Kitty, cunhada do camarada; Anna Kariênina viaja de São Petersburgo para Moscou com o propósito de ajudar a salvar o casamento do irmão e reparar sua relação com Dolly; o conde Vrônski, jovem oficial de charme inconfundível, servirá de obstáculo inconsciente à pronta felicidade de Lióvin, e do momento em que conhece Anna passará a ser como que sua “sombra” — até arrastá-la para uma das mais extraordinárias histórias de amor, paixão, saciedade e loucura de toda a literatura.
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Três famílias, três destinos: a íntima conexão de uma trama literária que se ergue diante dos olhos do leitor como a própria vida, como se o escritor nem mesmo se fizesse presente. Das traições de Stepan e de sua vida entregue à fanfarronice de aristocrata liberal em Moscou à profunda luta espiritual e moral de Lióvin, o personagem que mais intensa e dramaticamente representa a ética de Tolstói na busca de uma vida feliz, simples e ordenada, o romance se desdobra em uma combinação de anatomia da vida social e vigorosa interrogação filosófica e existencial com um resultado literário jamais alcançado novamente.

Entre esses dois polos, contudo, está Anna Kariênina, a mais fascinante personagem feminina do século XIX. Anna, a deslumbrante mulher que arrebata todas as atenções em um baile em Moscou ou em São Petersburgo com a mesma facilidade com que atrai para si todos os carinhos das crianças na casa da cunhada Dolly. Essa “mulher extraordinária”, vivaz e amorosa, presa em um casamento cinzento, experimentará a paixão avassaladora por Vrôski e a entrega absoluta com um grau de reflexividade, de alegria imperiosa e de tormento insuportável, como nenhuma outra heroína na literatura foi capaz de expressar.
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Quando Lióvin finalmente a conhece, já quase ao fim do romance, a tragédia de Anna está praticamente desenhada. Descarrila-se a paixão vivida com Vrônski; o desespero pelo afastamento do filho pequeno consumirá suas energias como nada que se possa comparar. E sobre esse abismo do amor irracional, quase doentio, Tolstói conduz com sua mestria única um inventário das emoções humanas. Nenhum leitor somente lê o romance Anna Kariênina: é preciso vivenciá-lo. E é por isso que a infelicidade dessa mulher inesquecível espelha a tragédia de todos nós — mas para cada um a seu modo.
Publicado em VEJA de 23 de junho de 2021, edição nº 2743
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