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Mauricio de Sousa: “Fazer ler é um dom”

O criador da 'Turma da Mônica' explica por que resolveu resgatá-la apesar das passagens tidas hoje como preconceituosas

Por Mauricio de Sousa*
Atualizado em 20 set 2019, 10h12 - Publicado em 20 set 2019, 06h30

Quando vou ao centro de São Paulo para as reuniões da Academia Paulista de Letras, na qual desde 2011 tenho a honra de ocupar uma cadeira que já foi de grandes escritores, entro no prédio segurando as mãos dos personagens que me acompanham na estrada da vida desde que publiquei minha primeira tirinha do Bidu e do Franjinha na extinta Folha da Tarde, lá se vão sessenta anos. E chegam à minha memória meus pais, poetas que me alfabetizaram com quadrinhos depois que encontrei um gibi perdido na rua e pedi à minha mãe que lesse as historinhas para mim. Foi a partir dali que me encantei com os desenhos, cores, histórias. E, naturalmente, com o tempo também queria rabiscar aqueles tracinhos, pintar os desenhos e criar histórias. Mas eu queria ler sozinho. Tinha pressa. Minha mãe me alfabetizou em três meses (aos 5 anos) e me preparou para entrar no mundo dos livros. Li primeiro alguns pequenos títulos de fábulas, mas não demorou para que caíssem nas minhas mãos as obras de Monteiro Lobato. O Sítio do Picapau Amarelo me encantou. E segui lendo Lobato até chegar ao fim de sua coleção dirigida às crianças com Os Doze Trabalhos de Hércules. Mais encantos com a mitologia grega. E daí em diante a leitura deixou de ser mera rotina para se tornar quase uma obsessão que me alimenta intelectualmente até hoje.

Sabendo de minha admiração pela obra de Lobato, a Brasiliense, que foi sua editora em outras épocas, me convidou, na década de 90, para ilustrar seus livros em uma nova republicação. Recusei o convite. Mexer no que eu tinha lido e adorado como uma coisa sagrada, para mim, seria um sacrilégio. Não tinha coragem de alterar a obra de Lobato — nem que fosse com um desenho bonitinho. Mas, neste ano de 2019, quando os livros de Lobato já se encontram em domínio público e diversas editoras preparam “edições livres”, achei que era o momento de dar minha contribuição, finalmente. Assim, aceitei um convite da Editora Girassol Brasil para o desafio de redesenhar os clássicos personagens lobatianos. Já lançamos dois títulos dentro desse espírito: Narizinho Arrebitado e O Sítio do Picapau Amarelo. E vem um terceiro livro até o fim do ano. Nesse casamento do universo dele com o meu, a Mônica virou a Emília, a Magali tornou-se a Narizinho, o Cebolinha é o Pedrinho e outros personagens se mesclaram em minha homenagem muito pessoal ao autor que mostrou o protagonismo das crianças na nossa vida.

“O criador do Sítio do Picapau Amarelo é uma inspiração que me moveu no passado, me conduz no presente e serve de farol para iluminar o futuro”

Houve uma atualização do texto pela especialista Regina Zilberman, que deu um tom contemporâneo às obras para que o escritor seja lido com maior facilidade pelos milhares de crianças da nova geração que ainda não o conhecem. Nessa atualização, foram trocadas palavras de época que não se usam mais e outras que agora se entende serem de teor preconceituoso. Isso se deve, por exemplo, a expressões que ele utilizou ao se referir à personagem Tia Nastácia, ofensivas aos negros. Lobato realmente se valeu de expressões hoje inaceitáveis, mas que eram de uso corrente no tempo em que viveu. Provou, contudo, não ser preconceituoso no conto Negrinha, em que mostra Dona Inácia, proprietária da fazenda, arrependida pela maneira como havia tratado uma criança pequena chamada apenas pelo nome do título. A cena levou alguns historiadores inclusive a apontar o autor como uma figura crítica ao preconceito. Mas a verdade é que a obra de Lobato paira muito acima dessas controvérsias. Seus livros alimentaram de sonhos e magia várias gerações. E fazer uma criança ler é um dom que não devemos nos dar ao luxo de desprezar. Principalmente nos dias atuais.

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Escritores somente encontram sua razão de ser se conseguem ser lidos e adentrar a vida das pessoas pelo lado mais nobre do ser humano, seus sentimentos. A criança, então, é só sentimentos. E a curiosidade alimenta seu modo de ver o mundo. Quando colocamos o livro como uma semente em sua vida, ela cresce com os ensinamentos que é capaz de absorver, e o viver fica mais leve. Hoje, releio Monteiro Lobato como se estivesse revisitando minha infância e descobrindo as razões pelas quais nunca deixei de ser criança. Alguns autores nos fazem passar por essa experiência atemporal. Eu sempre quis ser um. Estou lutando para isso desde que me conheço por gente. E, ao flagrar o brilho nos olhinhos da criança que se aproxima de mim para um abraço ou um autógrafo, deixo escorrer aquela lágrima de alegria de meus 5 anos de idade. Devo muito a Monteiro Lobato por transmitir a mim o prazer que agora passo às novas gerações. O criador do Sítio do Picapau Amarelo é uma inspiração que me moveu no passado, me conduz no presente e serve de farol para iluminar o futuro.

*Mauricio de Sousa é escritor, desenhista e criador das histórias em quadrinhos da ‘Turma da Mônica’

Publicado em VEJA de 25 de setembro de 2019, edição nº 2653

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