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O som e a fúria

No romance 'Slumberland', o americano Paul Beatty põe abaixo lugares-comuns do ativismo ao embalo da cena musical de Berlim nos anos 80

Por Pedro Só
Atualizado em 30 jul 2020, 19h39 - Publicado em 6 set 2019, 06h30

Um negro entra num salão de bronzeamento artificial em Berlim. A situação é um convite para uma piada politicamente incorreta — e, na superfície, é isso o que mira o romancista americano Paul Beatty na cena impagável de Slumberland. Mas Beatty, ele próprio negro e dono de um humor incorretíssimo, atinge um nervo muito abaixo da epiderme ao remexer nas questões raciais. “Nós, os negros, que já fomos uma eterna modinha (…) somos tão medíocres e mundanos quanto o resto da espécie”, diz, logo na primeira página, o narrador da história.

SLUMBERLAND - de Paul Beatty (tradução de Rogerio W. Galindo; Todavia; 272 páginas; 64,90 reais e 39,90 reais na versão digital) (//Divulgação)

DJ Darky, o protagonista em questão, é o nome artístico de Ferguson W. Sowell, um americano de Los Angeles que se muda no fim dos anos 1980 para o lado ocidental da metrópole alemã, então ainda dividida pela Guerra Fria em uma parte capitalista e outra, comunista. Seu objetivo é encontrar o músico que, acredita, será primordial para ajudá-lo a finalmente capturar uma mítica “batida perfeita”: Charles Stone, saxofonista de jazz avant-garde que havia lançado em 1964 um LP supostamente “seminal” em que “desconstruía” cantigas infantis e que estava sumido fazia 25 anos. Darky possui o poder peculiar da “memória fonográfica”: não esquece e é capaz de identificar os sons que já ouviu, apegando-se por critérios estéticos até ao “guincho do dedo” de um menino alemão que faz pichações racistas. É usando esse dom que ele reconhece, durante compromisso de trabalho, o toque de Stone ao fundo de uma cena de zoofilia em um filme pornô. Sim, apesar de beirar a genialidade, o DJ paga as contas compondo trilhas para produções com nomes impublicáveis.

A pista para encontrar Stone, tratado pelos amigos como Schwa, é o Slumberland, bar berlinense frequentado por africanos e afrodescendentes — e também por alemãs determinadas a predar sexualmente os exemplares dotados de “exótica” beleza e renomada virilidade. É lá que o DJ vai trabalhar como “sommelier de jukebox”, exercitando sua enciclopédica cultura musical, enquanto se deixa objetificar e consumir por loiras nada geladas. A cena inicial, na sala onde Darky tonaliza sua pele para “um marrom bacana não ameaçador de crioulo de sitcom”, é apenas a segunda ou terceira de muitas surpresas humorísticas que Beatty vai encadeando, em prosa ágil e suingada, feito um comediante de stand-up.

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O autor de Slumberland poderia bem ser definido por aquele verso de Não Existe Pecado ao Sul do Equador, de Chico Buarque e Ruy Guerra: “Quando é lição de esculacho, olha aí, sai de baixo, que eu sou professor”. Aos 57 anos, Beatty de fato dá aulas de sátira no curso de escrita criativa da Universidade Columbia, em Nova York. Seu romance O Vendido, a primeira obra americana a vencer, em 2016, o Man Booker, o mais importante prêmio literário de língua inglesa, é uma brilhante e desvairada provocação que reverte a história da luta pelos direitos civis nos Estados Unidos. O protagonista e narrador, negro, escraviza um homem, também negro, e reintroduz a segregação racial em sua cidade. A frase que abre o livro sintetiza sua acidez: “Pode ser difícil de acreditar vindo de um negro, mas eu nunca roubei nada”.

Escolhas ficcionais assim são capazes de horrorizar mentes mais infantilizadas ou lobotomizadas por dogmas do ativismo contemporâneo, claro. Não por acaso, quando esteve no Brasil, em 2017, Beatty provocou desconforto na claque da filósofa Djamila Ribeiro durante um debate em São Paulo. A turma se irritou com a irreverência com que Beatty tratava de um tema tão sério quanto os direitos civis dos negros americanos. Também viu como heresia o fato de ele dizer que, ao contrário de Djamila, não se considerava um ativista. E que não estava nem aí para o que os brancos achavam das piadas sobre negros em seus livros.

A FERA – Beatty: lições de esculacho (Roberto Ricciuti/Getty Images)

Slumberland é o terceiro romance de Beatty e foi lançado originalmente em 2008, sete anos antes de O Vendido. Os paralelos entre os conflitos de seus protagonistas são óbvios: ambos vivem em sociedades ditas “pós-raciais” mas ao mesmo tempo marcadas pela hipocrisia e pelo preconceito. No caso de Slumberland, as pessoas são segregadas por um símbolo bem concreto: o Muro de Berlim. Na história do DJ Darky, porém, a Alemanha dividida é um gancho para dialogar em vários níveis com o clássico romance picaresco O Homem Invisível, de Ralph Ellison (1914-1994), obra central sobre a identidade afro-americana escrita em 1952.

O DJ tem uma percepção de mundo audiocêntrica e, ao se mudar para Berlim, tenta ser visto com olhos diferentes, sem o peso da história racial americana. “Eu gostar de música clássica me torna um sujeito bem ajustado?”, indaga, ao rejeitar a narrativa do jazz como música dos deslocados e infelizes. Em um dos lances mais iconoclásticos da trama, o amor por gravações obscuras o faz desenvolver conexões amistosas com um skinhead neonazista. “Odeio Wynton Marsalis do mesmo modo que Rommel odiava Hitler”, compara o narrador, em meio a insultos divertidos ao trompetista, acusado de ter “questões psicossexuais mal resolvidas com a mãe África”. Quase todos os personagens conhecem música profundamente, e Beatty não pede licença antes de usar termos técnicos como “ratamacue invertido no ostinato”, ainda que seja para fazer baixa comédia. “A flatulência era modal como um cool jazz, com todo um vibrato comedido e a entonação impecável de um solo de tuba de Ray Draper”, compara.

Slumberland é um coquetel desenfreado de referências musicais e não musicais. Beatty vai de Pete Maravich (1947-1988), jogador branco cult da NBA, a Osamu Dazai (1909-1948), escritor japonês; em duas frases, saltita do Clube do Mickey (Britney Spears, Justin Timberlake e Christina Aguilera) para William Faulkner (1897-1962) sem forçar a barra. É leitura mais bem saboreada com o Google ao alcance das mãos. E em ambiente adequado para rir em voz alta de tiradas assim: “Detesto gente que detesta Tom Cruise, autômatos culturais ao ouvir o nome dele recuam por reflexo”. Embalada por uma trilha sonora que quebra tudo, a literatura de Paul Beatty põe abaixo o muro das correções políticas.

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Publicado em VEJA de 11 de setembro de 2019, edição nº 2651

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