IMPERDÍVEL: ‘Poema Sujo’, de Ferreira Gullar, ganha nova edição
Livro marca estreia do escritor na Companhia das Letras, editora que vai republicar obra do brasileiro
Poema Sujo (Companhia das Letras, 112 páginas, 34,90 reais), publicado originalmente em 1976, foi o livro escolhido para marcar a estreia de Ferreira Gullar na Companhia das Letras – em janeiro, o escritor assinou contrato para levar toda sua obra para a editora, após décadas na José Olympio. A escolha por Poema Sujo foi acertada: é um dos poemas mais importantes de Gullar, que o escreveu enquanto estava exilado em Buenos Aires durante a ditadura militar brasileira.
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“Sentia-me dentro de um cerco que se fechava. Decidi, então, escrever um poema que fosse o meu testemunho final, antes que me calassem para sempre”, explica o poeta nas páginas iniciais do volume. Mas é justamente a ele que Gullar atribui sua volta ao Brasil: após ter sido lido na casa de Augusto Boal na Argentina, o poema foi gravado em uma fita cassete e trazido ao país por Vinicius de Moraes. Por aqui, o poeta fez o que pôde para divulgá-lo, até que foi publicado. O sucesso do texto acabou fazendo com que jornalistas, escritores e artistas pedissem aos militares que deixassem Gullar retornar ao Brasil sem sofrer represálias.
Poema Sujo, às vezes regulares e metrificados, às vezes livres, às vezes visuais como propunha o concretismo, saem aos borbotões, criando uma atmosfera tão repressora quanto aquela vivida pelas vítimas da ditadura. É o principal exemplo do que o poeta afirma ser sua fase “livre”, em que não tem mais amarras com esta ou aquela escola literária – tem um pouco de cada uma delas.
Leia um trecho do poema:
Poema Sujo
turvo turvo
a turva
mão do sopro
contra o muro
escuro
menos menos
menos que escuro
menos que mole e duro menos que fosso e muro: menos que furo
escuro
mais que escuro:
claro
como água? como pluma? claro mais que claro claro: coisa alguma
e tudo
(ou quase)
um bicho que o universo fabrica e vem sonhando desde as entranhas
azul
era o gato
azul
era o galo
azul
o cavalo
azul
teu cu
tua gengiva igual a tua bocetinha que parecia sorrir entre as folhas de
banana entre os cheiros de flor e bosta de porco aberta como
uma boca do corpo (não como a tua boca de palavras) como uma
entrada para
eu não sabia tu
não sabias
fazer girar a vida
com seu montão de estrelas e oceano
entrando-nos em ti
bela bela
mais que bela
mas como era o nome dela?
Não era Helena nem Vera
nem Nara nem Gabriela
nem Tereza nem Maria
Seu nome seu nome era…
Perdeu-se na carne fria
perdeu na confusão de tanta noite e tanto dia
perdeu-se na profusão das coisas acontecidas
constelações de alfabeto
noites escritas a giz
pastilhas de aniversário
domingos de futebol
enterros corsos comícios
roleta bilhar baralho
mudou de cara e cabelos mudou de olhos e risos mudou de casa
e de tempo: mas está comigo está
perdido comigo
teu nome
em alguma gaveta.