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‘Extrema-direita de 1922 era menos nociva que a atual’, diz pesquisadora

Para a historiadora Marcia Camargos, a elite brasileira que patrocinou a Semana de Arte Moderna também era mais esclarecida que a contemporânea

Por Diego Braga Norte
4 fev 2022, 14h42

Vinte anos depois do lançamento do seu livro Semana de 22: Entre Vaias e Aplausos (Boitempo), a historiadora Marcia Camargos está de novo “de corpo e alma” pesquisando o modernismo. De Paris, onde vive desde 2016, Marcia conta que acaba de finalizar seu pós-doutorado na Universidade de Sorbonne sobre os modernistas brasileiros na França durante os chamados “anos loucos” da década de 1920. Em conversa com VEJA, ela diz que acompanha com muito interesse os desdobramentos do centenário da Semana de Arte Moderna de 1922 e traça paralelos entre a sociedade da época e a atual.

Para ela, 100 anos depois da Semana, apesar das contradições internas e muitas correntes, é inegável a contribuição do modernismo o país. A historiadora ainda aponta o movimento como a “presença mais forte que existe na cultura brasileira”. Por outro lado, muitos ideais progressistas e civilizatórios do modernismo se estagnaram ou até retrocederam. Leia abaixo trechos da conversa de Marcia Camargos com Veja:

 

Em 2002, quando a Semana fez 80 anos, a senhora lançou um livro fazendo um balanço crítico do modernismo e afirmou que o movimento, diferente de outras correntes estéticas anteriores, é mais fragmentado. Poderia explicar melhor essa característica? A Semana de 1922 foi um grito público, um relâmpago que ajudou a disseminar o que depois seria definido como modernismo. Acontece que o modernismo não é um estilo fechado, com regras estéticas bem delimitadas como, por exemplo, o gótico e o barroco. O que nós costumamos chamar de modernismo brasileiro foi elaborado depois de 1922 pelos próprios participantes, por intelectuais, estudiosos, pela incorporação de inúmeros outros elementos que não estavam presentes na Semana; como o folclore, as culturas negra e indígena e outros. O modernismo é bastante fluido. É mais uma tendência que um estilo. Como ideia, é a presença mais forte que existe na cultura brasileira. Na época, dentro do próprio movimento modernista havia embates e correntes muito díspares, como a antropofagia libertária do Oswald de Andrade e o movimento Verde-Amarelo, de inspiração fascista, do Plínio Salgado, Cassiano Ricardo e Menotti del Picchia.

 

Falando nessa aproximação de alguns modernistas com um nacionalismo de inspiração fascista, dá para traçar paralelos com o momento atual, com pessoas do governo federal, das elites e da cultura flertando com o autoritarismo? A extrema-direita brasileira da época era menos nociva do que a atual. Eles não estavam no poder e nem eram ligados às milícias. O integralismo nunca teve a força popular que o nazismo e o fascismo tiveram na Europa. Pelo contrário, em vários momentos eles foram rechaçados pelo povo trabalhador, como na famosa Revoada dos Galinhas Verdes na Praça da Sé [em 7 de outubro de 1934, os integralistas foram impedidos de fazer uma manifestação de inspiração fascista no centro de São Paulo].

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Seu livro e outros trabalhos destacam o papel central da elite da época no financiamento e propagação do modernismo. Qual o papel das elites na cultura brasileira hoje? A elite da época era melhor que a atual, tinha uma visão mais progressista da sociedade. Grande parte da elite da época era bem educada, vivia em contato com a Europa. Era um pessoal positivista, com a intenção de conduzir o progresso. Queriam promover a educação, saúde e esportes, criar um país mais progressista, mais moderno. É nessa época que surgem o ensino público gratuito para todos, as bibliotecas públicas, as Santa Casas patrocinadas com dinheiro privado e outras conquistas básicas. É claro que eles queriam manter seus privilégios, mas tinham essa visão progressista. A elite de hoje, com raríssimas exceções, é absolutamente conservadora e fechada em si mesma, não tem visão de futuro, de país, de cidadania. Hoje só pensam em aumentar seus privilégios. Fazem fundações com o nome da própria empresa, abatem impostos e o resultado acaba sendo melhor para o negócio do que para a população.

 

Hoje, muitas décadas depois desse ímpeto progressista que a senhora menciona, é possível falar em modernidade no Brasil? A modernidade é não epidêmica, contagiosa, mas algo construído, um processo cultural, social e econômico. Muita gente vai a Dubai, vê tudo aquilo e se espanta: “Nossa, que moderno!”. Mas se esquecem que lá é uma ditadura islâmica retrógrada, machista, que explora o trabalho de imigrantes em condição análoga à escravidão. O conceito de modernidade é e deve ser sempre mais humanista. Modernidade é inclusão social, distribuição de renda, educação, saúde e cultura. Direitos básicos que são negados à maioria da população. Hoje, no Brasil, tem gente passando fome e comprando ossos para fazer sopa. Não dá para falar em modernidade com uma situação dessas.

 

A Semana é frequentemente criticada por ter sido um evento elitista. A senhora concorda? Sim, foi elitista. A elite estava no centro do palco e os marginalizados estavam fora do Teatro Municipal. O povo, a cultura popular, elementos negros e indígenas não estavam presentes na Semana de 22. Não teve violão, pandeiro, cavaquinho, nada disso. E na época, os moderníssimos Donga e, principalmente, Pixinguinha já eram muito populares, inclusive fora do Brasil. Mesmo mulheres, havia pouquíssimas, dava para se contar nos dedos de uma mão. A Semana teve a Anita Malfatti, Guiomar Novaes, Zina Aita e uma bailarina obscura. Depois, num movimento que se inicia, sobretudo, com as viagens etnográficas do Mário de Andrade a Minas, Amazônia e outras regiões do país, o modernismo foi se enriquecendo dessas referências. Hoje, indígenas, negros e moradores de favelas estão muito mais presentes no circuito cultural e literário, e isso é ótimo. Eles estão tomando o centro do palco e estariam em peso numa hipotética nova Semana.

 

Em seu livro, a senhora menciona algumas aspirações do movimento modernista como utópicas. Poderia explicar melhor essa abordagem? O modernismo, conceitualmente, é uma boa utopia. Esse desejo de construção de uma identidade nacional é utópico. No fundo, o que é identidade nacional? O nacional está permeado e contaminado por vários elementos estrangeiros. Ou seja, deixou de ser nacional. É uma utopia no sentido em que quanto mais chegamos perto dessa identidade nacional, mais ela se afasta. Mas é isso que nos faz andar. Mais que definir, essa utopia cria percursos, construção de saberes, repertórios culturais.

 

Cem anos depois, quais os maiores legados da Semana de 1922 e do próprio modernismo? Os maiores legados são a antropofagia e o rompimento das barreiras entre a arte popular e a erudita. É preciso sempre destacar o esforço dos modernistas em fazer conexão com nós mesmos, com nosso povo e nossa cultura. Foi um movimento de construção de pontes e destruição de barreiras. Se atentarmos para o que veio depois — como a Bossa Nova e a Tropicália, por exemplo —, vemos muito claramente a mistura do refinamento intelectual, das bases eruditas, com o popular.

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