A palavra que define o coronavírus é: exaustão. O ciclo do vírus no meu corpo foi de 28 dias ininterruptos de febre. Começava em torno das 18 horas. Eu tomava um comprimido de analgésico e desmaiava. No meio da madrugada, o efeito passava, a febre voltava, eu tomava outro comprimido e tornava a dormir. Acordava pela manhã com o corpo dolorido, sem vontade de sair da cama. Ficava assim até o ciclo se reiniciar mais uma vez. Eu me sentia um mero espectador da batalha que meu organismo travava contra o vírus. Sem poder fazer nada, apenas torcia para que minhas defesas fossem fortes o suficiente para matar o vírus. Não fiquei desesperado: sempre achei que venceria sem precisar ser hospitalizado. Aos 56 anos, estou em boa forma, corro todos os dias. Meu sistema cardiorrespiratório se encontra em perfeitas condições. Mas, no nono dia, clímax da doença, temi por complicações. Comecei a ter falta de ar, uma sensação de estar me sufocando. Você tenta sugar o ar, mas ele não chega a seus órgãos. Parece um afogamento seco. Felizmente, tão rápido quanto apareceu, a infecção saiu do meu corpo. Só fiquei totalmente rouco por um bom tempo. Demorei mais de um mês para conseguir cantar.
Nada se compara ao que senti nas últimas seis semanas. Nunca, com meus 56 anos nas costas, peguei algo tão forte como esse vírus. Se colocar todas as doenças que tive em uma escala, a pior de todas é a Covid-19, sem dúvida. E olha que ela foi apenas mais uma das várias doenças que enfrentei. Meus amigos brincam que, se eu tiver sete vidas, já gastei quatro. Em 2009, tive gripe suína. Em 2016, dengue. Tenho sorte por ter vencido cada uma delas, mas é muito azar uma pessoa ter pego tudo isso, né? Meu pai também acumulava doenças em série. Ele era diplomata e viajava muito. Pegou tifo na Europa, escorbuto e malária na África, tuberculose no Brasil, e acabou falecendo vítima de um câncer há alguns anos. Ele ficou marcado como uma espécie de para-raios de moléstias, e parece que eu herdei isso. Vou atravessar minha vida também sendo vítima de todas essas coisas.
Além das doenças, sofri um grave acidente em 2009, ao cair do palco durante um show. Tive traumatismo craniano, quebrei seis vértebras, duas costelas, um osso da mão e o sacro. Fiz diversas cirurgias para colocar os ossos no lugar. Não sou supersticioso, mas eu sofri a queda no dia 31 de outubro, Dia das Bruxas. Saí da UTI em uma sexta-feira 13, e peguei uma infecção hospitalar no mesmo dia. Voltei para a UTI e fiquei internado mais um mês. Quase morri. Quando voltei para casa, precisei de cadeira de rodas. Só subi aos palcos depois de seis meses — com muita dor, fazia fisioterapia e alongamento no camarim. Foi bastante traumático. As pessoas falaram que eu estava bêbado, mas eu não estava, foi apenas um desequilíbrio. Admito, porém, que o uso de drogas e bebidas alcoólicas comprometeram relacionamentos e a integridade do meu trabalho por muito tempo. Se eu não estivesse de ressaca, ou não estivesse com drogas no corpo, não teria atrasado gravações de discos nem teria que refazer videoclipes. Tolerei e autorizei coisas inaceitáveis. Anos depois, em razão dessa frustração, procurei ajuda. Queria mostrar para as pessoas que estavam passando por isso quanto essas situações podem acabar com nossa vida e carreira. Deixei para trás a cocaína há quinze anos, parei com o cigarro há dez e estou sem beber há três. E sabe o que mais? Vai parecer maluquice, mas estou há três semanas sem tomar Rivotril. Um hábito horrível que adquiri durante as rotinas insanas de viagens sem dormir. A Covid-19 me ajudou nisso: só consegui me livrar quando parei minha rotina totalmente. Era a última substância que eu precisava largar. Agora posso dizer que estou limpo.
Depoimento dado a Eduardo F. Filho
Publicado em VEJA de 20 de maio de 2020, edição nº 2687