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Contos do autor de ‘Torto Arado’ agradam, mas têm sabor requentado

Enquanto baiano Itamar Vieira Júnior prepara novo romance, lançamento traz contos que são, na maioria, antigos - e não chegam aos pés de seu grande sucesso

Por Diego Braga Norte
3 jun 2021, 17h12

Depois de conquistar três prêmios importantes (Leya, Oceanos e Jabuti) e vender mais de 165 mil cópias (um feito e tanto para o mercado editorial brasileiro) com o ótimo Torto Arado, é natural a ansiedade em torno da próxima obra do escritor baiano Itamar Vieira Junior, agora pop. O lançamento da coletânea de contos Doramar ou a Odisseia resolve essa equação de modo esperto. A nova obra, embora não seja totalmente inédita, aplaca a ansiedade do público enquanto o autor dedica-se ao seu próximo romance. Dos doze contos da coletânea, apenas cinco são desconhecidos do público; os sete demais são todos do segundo título do autor, A Oração do Carrasco (Mondrongo, 2017).

O resgate de contos já publicados permite aos leitores conhecer os textos de Vieira Junior antes de sua repentina fama, mas a reedição também deixa no ar um aroma de algo requentado. Como um aperitivo feito na antevéspera, que foi tirado da geladeira, esquentado e servido com um novo molho para entreter os convidados antes da chegada do prato principal. Ainda que os contos sejam bons, é pouco. Os leitores comensais que aguardam algo tão saboroso e requintado como Torto Arado podem ficar decepcionados. O lado contista de Viera Junior (ainda) não tem o mesmo tempero, potência e refinamento da sua faceta romancista.

Assim como em Torto Arado, é bem-vinda a opção do autor em colocar mulheres como protagonistas e narradoras de suas histórias, alterando as expectativas, sensibilidade e rumos dos enredos. Aliás, o tipo de enredo quase diáfano que o autor tece em alguns contos é herança direta e declarada de Clarice Lispector. Sensações e emoções em detrimento de ações e descrições são opções narrativas que muito combinam com o estilo, as personagens e as narradoras de Clarice. Dessa lavra se sobressaem os contos Alma e Doramar ou a Odisseia. O primeiro é narrado por uma escrava fugitiva que vai rememorando suas lembranças como cativa na medida em que avança em sua fuga. A busca pela liberdade revela-se uma batalha dificílima, com vários percalços no caminho, mas que vale a pena ser lutada.

No segundo, o título é uma referência explícita a um dos maiores cânones da literatura ocidental, o poema épico A Odisseia, de Homero. Mas, no lugar do herói Ulisses que tenta retornar para casa depois da Guerra de Troia, há a doméstica Doramar voltando ao lar após um dia de trabalho. “Mais uma vez Doramar seguia, segurando-se às barras do ônibus, encaixando-se nos espaços possíveis do lotação. Doramar, outra vez, a empregada doméstica cansada de seu trabalho. Fechava os olhos de novo para tentar encontrar o que não sabia, o que havia ficado para trás. Doramar seguia disposta a não voltar. Não era possível enfrentar mais um dia.”

Dentre os contos inéditos, um dos melhores é Na profundeza do Lago. Alternando o foco da narrativa, que começa na terceira pessoa e termina na primeira, com a perspectiva da personagem, o texto é sobre uma mulher que vai passar uma temporada em uma propriedade rural de sua família. Lá, ela descobre que uma barragem em suas terras estancou um riacho e está prejudicando a lavoura de outras famílias que ficaram sem água. Surge daí um conflito social e, mais fortemente, existencial, com o autor explorando muito bem as hesitações e sentimentos da personagem.

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Nova intelectualidade

Itamar Vieira Junior é geógrafo, funcionário concursado do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) e doutor em estudos étnicos e africanos pela Universidade Federal da Bahia. Sua formação profissional e intelectual se faz muito presente em suas obras. Ele opta deliberadamente por contar histórias do lado mais fraco da sociedade — as chamadas minorias sociais. O escritor não está sozinho nesse movimento de dar voz às minorias sociais. Negro e oriundo de classes baixas, ele ascendeu social e profissionalmente por meio dos estudos e de seu talento; e hoje integra algo maior e crescente em nossa sociedade. Ele, ao lado de nomes como Djamila Ribeiro, Silvio Almeida, Ailton Krenak, Sônia Guajajara, dentre muitos outros, formam uma nova intelectualidade brasileira emergente.

Em sua história, o Brasil já teve diversos autores, pensadores e profissionais de destaque não brancos, claro, mas nunca uma grande massa crítica da minoria, como atualmente. Essa nova intelectualidade, com representatividade na mídia e na cultura, configura um avanço civilizatório no país. Afinal, Vieira Junior pode escrever com verossimilhança, emoção e profundidade histórias de  quilombolas, escravos, índios, pobres e mulheres negras. Visto pelos olhos das minorias, o Brasil atual é o país da falta de saneamento em meios às moderníssimas startups do Itaim Bibi, do racismo estrutural, do atraso no centro do progresso. Há algo de novo na cultura e nas letras brasileiras e Itamar Vieira Junior é um nome incontornável desse movimento que resgata o velho Brasil às novas gerações.

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O livro
(Todavia/Divulgação)

Doramar ou a Odisseia, de Itamar Vieira Junior

Todavia, 160 páginas.

49,90 reais

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