Biografia resgata nome injustamente esquecido do jornalismo americano
Lançamento em quadrinhos retrata o repórter e aventureiro William Seabrook
O jornalista William Seabrook (1884-1945) foi uma figura e tanto na história do jornalismo mundial. O repórter americano viveu com beduínos no deserto, presenciou cerimônias vodus, sentou-se à mesa com canibais e conviveu com os vanguardistas europeus. As reportagens e livros que deixou são testemunhos de suas ricas contribuições à crônica de viagens do início do século XX e de sua exploração do ocultismo e de culturas antes consideradas, equivocadamente, por preconceito, como “exóticas”.
Apesar da carreira bem-sucedida, a vida de Seabrook foi marcada por uma longa atração pelo alcoolismo e por relacionamentos complexos, quase sempre atravessados por uma inclinação ao fetichismo e ao sadomasoquismo. Sua dupla identidade como um viajante engajado e um indivíduo problemático levou a várias interpretações de seu legado. Em O Abominável Sr. Seabrook, lançado recentemente pela Quadrinhos na Cia., o artista canadense Joe Ollmann optou por não ser reverente com o biografado.
No álbum, que cobre desde a primeira infância até o suicídio por ingestão de tranquilizantes, Seabrook é retratado em todas as suas nuances, sem julgamentos ou moralismos desnecessários. Quem o ilumina, a rigor, são as pessoas que deixaram registros sobre relacionamentos com ele. Especialmente Marjorie Muir Worthington, a segunda mulher, autora de O Estranho Mundo de Willie Seabrook, biografia do ex-marido muito rica em detalhes.
Tê-lo em quadrinhos é ideia inteligente. Ollmann passou uma década pesquisando Seabrook. Além do testemunho de Marjorie, ele foi à fonte primária, os livros do biografado. “Sempre afirmei que acho Seabrook interessante não por causa das aberrações”, escreve o autor no prefácio do livro. “Mas porque ele resolveu falar delas. O que me chamou a atenção foi a honestidade. Os interesses de Seabrook pouco me interessam.”
Conhecido por uma escrita envolvente, Seabrook era um best-seller em sua época. Escreveu onze livros, dos quais apenas um, A Ilha da Magia (1929), foi lançado no Brasil e está há muito tempo fora de catálogo. Publicado em 1929, oferece em primeira mão detalhes vívidos de rituais haitianos de vodu e bruxaria. Foi o veículo por meio do qual ele introduziu o conceito de mortos-vivos — os hoje populares zumbis — no Ocidente.
Seabrook era pródigo em aventuras mirabolantes. Em Caminhos da Selva (1930), descreve as viagens na África Ocidental e relata a experiência de comer carne humana com tribos canibais. “Era tão parecido com uma vitela boa e totalmente desenvolvida que acho que nenhuma pessoa com um paladar de sensibilidade comum e normal poderia distingui-la”, escreveu. Mais tarde, admitiria ter conseguido carne humana de um hospital em Paris, que ele mesmo cozinhou.
Outro momento ruidoso está registrado no livro Manicômio (1935), no qual Seabrook relata uma estadia de oito meses em um hospital psiquiátrico de Westchester, no início dos anos 1930. Ele se internou voluntariamente para tratar o alcoolismo agudo. Sua avaliação sincera e autocrítica das experiências à época oferece uma visão muito interessante sobre o vício e o tratamento, ainda muito empírico naquele período da História.
À frente de seu tempo, Seabrook precedeu nos métodos e no estilo jornalistas que se tornariam escritores de renome, vindos de redações, como Ernest Hemingway e Hunter Thompson. Era dono de uma prosa escorreita, que atraía a atenção de muita gente. Transitava entre o mundano e o sofisticado com desenvoltura, tanto que conviveu e gozou da intimidade de nomes da vanguarda artística europeia, como os irmãos Thomas e Heinrich Mann, o fotógrafo Man Ray e a amigona dos americanos em Paris, Gertrude Stein. Trabalhou também nos jornais sensacionalistas e popularescos de William R. Hearst, o principal magnata da imprensa americana nos anos 1930 e 1940.
No período em que experimentou a sobriedade enquanto estava internado, o jornalista foi cândido ao analisar o que sempre o atraía de volta para o caminho do álcool e da autodestruição, apesar da grande popularidade. “Posso ter ganhado mais dinheiro do que Gertrude Stein ou James Joyce”, disse ele ao médico que o acompanhava. “Mas não sou nem Stein, nem Joyce.”
Publicado em VEJA de 29 de novembro de 2024, edição nº 2921