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Albert Camus: ensaio expõe a lucidez atualíssima do autor existencialista

O pensador voltou à lista de mais vendidos na pandemia

Por Diego Braga Norte 5 mar 2022, 08h00
COERÊNCIA ACIMA DE TUDO - Camus: “Não é mais tanto do indivíduo que a sociedade deve defender-se, mas, sim, do Estado” -
COERÊNCIA ACIMA DE TUDO - Camus: “Não é mais tanto do indivíduo que a sociedade deve defender-se, mas, sim, do Estado” – (Rue des Archives/AGIP/.)

Quando a sociedade francesa é confrontada com algo absurdo, revoltante, injusto, contraditório ou simplesmente curioso, em alguns círculos sociais do país há uma máxima que nunca sai da moda — e sempre pega bem: “O que Camus pensaria sobre isso?”. Essa maneira cotidiana de recorrer ao filósofo e escritor Albert Camus (1913-1960) é um bom termômetro para mensurar a atualidade de sua obra. O romance O Estrangeiro (1942), que já foi citado em músicas de The Cure e Caetano Veloso, reapareceu mais recentemente na faixa As Caravanas, de Chico Buarque. A história do francês que mata um árabe e põe a culpa no sol rendeu ainda um prêmio Goncourt ao escritor argelino Kamel Daoud, com O Caso Meursault (2015), que reconta o assassinato do ponto de vista da vítima. As peças teatrais de Camus ganham novas montagens anualmente. E, valendo-se de coincidências quase premonitórias, seu livro A Peste (1947) voltou à lista de best-sellers em vários países durante a pandemia do novo coronavírus.

O estrangeiro

Mais que um filósofo existencialista identificado com o “absurdo da condição humana”, expressão que se tornou o epítome de sua obra, o franco-argelino Camus foi um pensador extremamente instigante. Sua originalidade é atestada no ensaio Reflexões sobre a Guilhotina, que acaba de ganhar sua primeira edição no Brasil. Publicado originalmente em 1957, o texto levanta argumentos morais, filosóficos e estatísticos para defender o fim da pena de morte. Ela vigorou na França até 1981 e a brutal guilhotina, celebrizada na Revolução de 1789, foi usada pela última vez há menos de cinquenta anos, em 1977, na execução do assassino confesso Hamida Djandoubi, em Marselha.

REFLEXÕES SOBRE A GUILHOTINA, de Albert Camus (tradução de Valerie Rumjanek; Record; 96 páginas; 59,90 reais e 41,90 reais em e-book) -
REFLEXÕES SOBRE A GUILHOTINA, de Albert Camus (tradução de Valerie Rumjanek; Record; 96 páginas; 59,90 reais e 41,90 reais em e-book) – (./.)

Em seu livro O Homem Revoltado (1951), Camus já criticava a legitimação da violência como um fim em si mesmo, ação justificada como “necessária” em diferentes processos históricos. O autor planejava incluir naquele livro um capítulo sobre a pena de morte, mas não o fez. Reflexões sobre a Guilhotina supre essa lacuna, mas vai além ao analisar os vínculos entre o indivíduo e o Estado. “Há trinta anos, os crimes de Estado se sobrepõem em muito aos crimes dos indivíduos (…). Não é mais tanto do indivíduo que nossa sociedade deve, portanto, defender-se, mas, sim, do Estado”, escreve Camus em uma passagem de lucidez notável.

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A peste

Para o filósofo, a execução repete o crime que se pretende punir, impõe uma sentença irreversível e sujeita a erros humanos, e resguarda-se como medida de exemplaridade duvidosa, pois as estatísticas demonstram que não há relação entre o fim da pena de morte e um eventual aumento da criminalidade. Camus afirma que a pena capital nada mais é que uma vingança pura e simples, um resquício instintivo e primitivo em sociedades civilizadas. Para ele, a lei de talião — aquela que prega o olho por olho, dente por dente — “é da ordem da natureza e do instinto, não é da ordem da lei. A lei, por definição, não pode obedecer às mesmas regras que a natureza. Se o assassinato está na natureza do ser humano, a lei não é feita para imitar ou reproduzir esta natureza. Ela é feita para corrigi-la”.

Reflexões sobre a guilhotina

Do ponto de vista lógico e estritamente racional, sem apelar para sentimentalismos ou ideologias, é difícil discordar do autor. A força de sua argumentação reside tanto na clareza de suas ideias e propósitos como nos fatos elencados no ensaio. A mistura de robustez intelectual com objetividade perpassa as obras e opiniões de Camus — daí vem grande parte de sua constante (talvez crescente) atualidade. Outro atributo — muito raro no mundo de pós-verdades, cancelamentos e mea-culpa midiáticos — é a coerência.

O Homem Revoltado

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Ao longo de sua vida, Camus adicionou camadas metafísicas aos seus romances e peças, entremeando-os com suas ideias filosóficas; atuou na imprensa de resistência francesa ante a ocupação nazista; ao contrário de existencialistas como Jean-Paul Sartre, que defendeu o regime de Stalin até onde pôde, Camus rompeu com os comunistas para manter-se fiel ao seu antitotalitarismo à esquerda e à direita; e causou espanto à intelligentsia ao posicionar-se contra a independência da Argélia, então colônia francesa. Em seus erros e muitos acertos, Camus não foi só um pensador fiel às convicções: ele era — e ainda é — uma voz da consciência humanista.

Publicado em VEJA de 9 de março de 2022, edição nº 2779

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A peste
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Reflexões sobre a guilhotina
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O Homem Revoltado
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