Em 1973, Paul McCartney passou uma temporada em Lagos, capital da Nigéria, em busca de novas sonoridades para o álbum Band on the Run, da sua então banda pós-beatles, Wings. À época, o país africano era visto como um destino miserável e inóspito, mas chamava a atenção por exportar um ritmo criativo, o afrobeat, mistura de jazz com funk cantada em iorubá, uma das principais línguas locais. À frente da tendência estava um ídolo inconteste: Fela Kuti. “Chorei assim que o ritmo bateu. Foi um dos melhores momentos musicais da minha vida”, disse Paul ao relembrar da apresentação de Kuti no badalado African Shrine, em Lagos. Ironicamente, o músico africano, que já era uma lenda no país, não gostou da presença de Paul, e foi aos jornais dizer que o inglês estava roubando a música de lá. Ao final, eles ficaram amigos, mas o ex-beatle jamais incluiria nada da África em suas músicas.
Quase cinquenta anos depois, jovens músicos nigerianos de nomes tão exóticos como Wizkid, Davido, Fireboy DML, CKay e Burna Boy seguem os passos de Fela Kuti. Mas a nova geração professa um afrobeats (agora no plural) renovado. Abertos às novas influências e com canções em inglês, mas também em iorubá e ibo, outra língua do país, eles trocam o jazz pelas batidas favoritas do momento, o trap e o hip-hop. O resultado, no entanto, é original e poderoso o suficiente para encantar artistas graúdos como Madonna, Justin Bieber, Drake e Ed Sheeran, que logo se interessaram em gravar com eles. Assim, pela primeira vez na história, a Nigéria passou a figurar com frequência nas listas das músicas mais tocadas do mundo — a ponto de a revista Billboard criar recentemente um ranking americano só para o afrobeats.
O surgimento de uma nova safra nigeriana tão potente espelha o momento atual do país africano. Embora ainda enfrente problemas arraigados como a pobreza e o terrorismo islâmico do Boko Haram, a Nigéria já tem quase a mesma população do Brasil (206 milhões de pessoas) e detém reservas de petróleo e de insumos para fertilizantes que a colocam em excelente posição na economia mundial nos dias de boicote a outro grande produtor desses itens, a Rússia. Como a Nigéria sempre foi um caldeirão de boa música, nada mais natural que seu soft power — o poder de influenciar e ditar comportamentos culturais — se imponha em um período de alta do país.
Aos 31 anos, Wizkid é um dos principais expoentes dessa nova era. Com mais de 1,2 bilhão de visualizações de seus vídeos no YouTube e 14,3 milhões de seguidores no Instagram, ele foi o primeiro nigeriano a figurar na disputada lista Hot 100 da Billboard, que reúne apenas as canções mais tocadas nos Estados Unidos, com a faixa Essence, lançada em parceria com Justin Bieber. O feito lhe rendeu duas indicações ao Grammy de 2021. Ele não ganhou, mas o troféu foi para outro nigeriano, Burna Boy, que levou o prêmio por Twice As Tall, na categoria de melhor álbum de música global, coincidentemente também em parceria com Bieber.
No futebol, a Nigéria, que já foi carrasca da seleção brasileira nos Jogos Olímpicos de 1996, marcou outro golaço neste ano com um representante do país na trilha sonora oficial da Fifa para a Copa do Mundo do Catar. O músico Davido (ele nasceu nos EUA, mas foi criado em Lagos e tem dupla nacionalidade) foi um dos escolhidos para interpretar Better Together, que contou também com a participação da americana Trinidad Cardona e da catarense Aisha. A força nigeriana vai além. O carismático Fireboy DML cativou Madonna e regravou com ela o hit Frozen, de 1998. Com o britânico Ed Sheeran, ele gravou a canção Peru, na qual canta em iorubá.
Apollo (Canary Yellow Vinyl & Tangerine Vinyl)
Apesar de aderirem aos ritmos internacionais, esses artistas se orgulham, por sinal, de seus idiomas nativos. Em Love Nwantiti (Ah Ah Ah), o cultuado CKay canta em ibo sobre seu “amorzinho” (tradução da palavra nwantiti). Lançada em 2019, a música explodiu no ano passado ao viralizar no TikTok. A África, definitivamente, está no centro do mapa da música.
Publicado em VEJA de 27 de abril de 2022, edição nº 2786
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