Tiago Ferro: “A literatura que não perturba não me interessa”
A implosão de uma geração de brasileiros perto dos 40 e 50 anos é tema do novo romance do paulistano, autor de 'O Pai da Menina Morta'

Tiago Ferro perdeu a filha de oito anos, em 2016, e transformou essa experiência trágica em literatura de qualidade em seu primeiro romance, O Pai da Menina Morta (editora Todavia), vencedor dos prêmios São Paulo e Jabuti. Ele acaba de lançar um segundo romance, O Seu Terrível Abraço, também pela Todavia. Tiago conversou com VEJA:
Por que o ano de 2013, com os protestos de junho, virou pano de fundo para romances de ficção, como é o caso de O Seu Terrível Abraço, mas também de Os Dias da Crise, de Jerônimo Teixeira? Dito de outro modo: o que há nele que não há em outros períodos históricos? Os eventos de 2013 inauguraram um novo ciclo de crise no Brasil, e que salvo engano ainda não se encerrou, daí sua força e tensão. O que há nele de especial é que mais do que outros acontecimentos, seu sentido e significado ainda estão em franca disputa. Assim, torna-se ótima matéria para a arte como um todo. Falando do meu livro, acredito que 2013 não chega a ser o pano de fundo, apesar de aparecer em diferentes passagens e ajudar a situar o narrador e também um certo espírito adolescente que atravessa o livro e essas manifestações. Mas é claro que nada impede que seja lido segundo a chave de 2013.
Um trecho de seu romance: “Chorei encolhido ao lado da privada do banheiro quando fiquei sabendo do diagnóstico. Tocava o hino nacional. A pior espécie de brasileiro festejava mais um golpe enquanto eu rastejava sozinho pelos azulejos velhos do apartamento da Vila Madalena”. Supondo que um desses brasileiros, o “da pior espécie”, lesse O Seu Terrível Abraço, como reagiria? O livro de fato não faz concessões ao neofascismo, ou como queira chamá-lo. Porém, mais do que atacar esse ou aquele grupo, o que está colocado é um fim de linha histórico. O mal estar amplo e generalizado espalhado por toda a vida comum, independente da sua inclinação ideológica. Diferente do que o trecho destacado possa sugerir, o fascismo não é personagem do livro, mas sim a desestabilização e a fratura contemporâneas. Desse movimento, não só a extrema direita sai prejudicada, mas também a psicanálise, a contra-cultura, ou seja, o que produzimos de pior e também de melhor. Sendo assim, e respeitando as potencialidades da ficção, não há restrições a nenhum tipo de leitor.
Em uma outra entrevista você se refere ao narrador de O Seu Terrível Abraço, como “um falso universal, um falso neutro”, o que implica usar a literatura para “atirar contra si próprio”. Um homem branco como você, perto dos 50 anos, de ideias liberais, intelectual de classe média, o que pode fazer para não sentir o mal estar da civilização? A questão é justamente sentir. Hoje existe todo tipo de mercadoria que promete aliviar esse sentimento. Meu objetivo foi intensificá-lo. O que eu busquei ao reconhecer esse falso universal e toda a problemática da chamada branquitude, foi colocar em questão esse tipo social e todo o seu aparato histórico e cultural, a partir da violência formal, sem manipulá-lo para assumir o papel de vilão, seja ele ou não. A virada aqui foi tirar proveito daquilo que me pareceu um impasse. Se o homem branco de classe média é um falso universal e ninguém mais quer saber dos seus dramas, por que não implodi-lo de uma vez? E junto com ele tudo o que está em volta, incluindo o próprio livro? Esse segundo romance trata dessa implosão, de certa ruína pessoal, geracional e histórica.
O Pai da Menina Morta, seu primeiro livro, escrito a partir de uma tragédia em família, recebeu os prêmios São Paulo e Jabuti. Como é, agora, com um segundo trabalho, descobrir-se romancista? Foi de fato um desafio saber se eu conseguiria dar forma a um novo livro a partir do estilo descoberto para aquela primeira história. Acredito que tenha funcionado, o que pode sempre ser negado pela crítica ou pelos leitores… De qualquer maneira, esse segundo romance me deixou muito à vontade para escrever novos livros.
Indique um livro contemporâneo que, de algum modo, converse com o seu. Algo como… gostei muito de O Seu Terrível Abraço e quero continuar no mesmo tom… Sem nenhuma intenção de me comparar, o Ioga do Emmanuel Carrère também mira a própria experiência do autor para investigar de maneira impiedosa, com ele mesmo e com o leitor, o que estamos chamando aqui de mal estar na civilização, ou, em termos mais atualizados, o horror contemporâneo. Nessa investigação, muitas posições são relativizadas, e pontos de vista insuspeitos são descobertos, o senso comum é abalado. O que me parece um dos grandes saldos da ficção. A literatura que não perturba, não me interessa. E o Carrère perturba.
Não é fácil – e talvez nem seja adequado – atrelar os escritores de um determinado período histórico a uma “escola”, a um grupo literário, como se faz com os beatniks de Jack Kerouac, os ingleses do grupo da chamada “autoficção” de Martins Amis, Christopher Hitchens e Salman Rushdie, para ficar com alguns exemplos. Você acha fazer parte de um certo tipo de literatura contemporânea? Independente da escola, há esse movimento na literatura contemporânea de autores que problematizam sua própria posição nas obras (e no mundo), em vez de fabularem livremente criando histórias que muitas vezes perdem o contato com suas realidades específicas. Essa é a literatura que mais me interessa. No meu caso específico, busco nesse movimento colocar em questão a minha vida, com tudo o que ela implica, mas também a própria escrita. Daí as idas e vindas no tempo, a mistura de registros, em alguns momentos um proposital mal-acabado, mudanças abruptas de assunto etc., o que nem sempre aparece em outros autores da chamada autoficção. Enfim, os rótulos ajudam a organizar, mas nunca dão conta da especificidade de cada livro.
As referências ao real em O Seu Terrível Abraço, colados ao noticiário, a lugares muito precisos, a bairros e ruas, tornam inevitável a tentativa de lê-lo como um roman à cléf. A realidade faz bem para a ficção? Ela é inevitável. Quando é usada para colocar esse ou aquele discurso já articulado por determinado grupo na boca dos personagens, para assim confirmar algum sentido da história, me parece que a ficção sai perdendo. Acaba surgindo o didatismo e todo tipo de maniqueísmo, é um pouco inevitável. Acredito não ter feito isso ao incluir esses registros na trama do meu livro. Cotejar a ficção com a realidade é apostar que existe uma verdade no lado da realidade, e não no da ficção, o que não me interessa. Eu ainda acredito que a literatura tem a capacidade de desvelar aspectos até então desconhecidos do processo social, e não apenas de confirmá-los ou negá-los. Também não acho que seja mero exercício de linguagem sem contato com a vida pedestre. Eu escrevo sobre o que eu conheço. Mas no fim, vou aprender muito sobre o meu livro e sobre o que ele tem a dizer, com os seus leitores.
