Na contramão da globalização, que tende a unificar os paladares, uma observação feita por Fialho de Almeida (1857-1911) há mais de um século se tornou profética. O escritor português dizia que quem defende seus pratos defende seu território. Cosmopolitas por natureza e vocação, as grandes cidades têm se tornado o espaço perfeito para a defesa do que há de mais brasileiro, com todas as suas pluralidades. Não por acaso, é nelas que muitos restaurantes regionais têm escolhido se estabelecer.
O processo não é de todo novo, e remonta ao início da urbanização, ainda recente no Brasil. As “Casas do Norte”, que ofereciam uma grande variedade de produtos nordestinos, conquistaram o sudeste e compõem o comércio de cidades como São Paulo e Rio de Janeiro desde as primeiras migrações, ainda nos anos 1930, formando gerações de paladares.
Agora, o nordeste continua em destaque, mas tem recebido companheiros de outras regiões. “Essa é uma tendência que vem se fortalecendo desde os anos 2000”, diz Marcelo Traldi, pesquisador e professor de gastronomia do Senac-SP. “É um movimento que começa na valorização dos produtos e culturas locais e culmina na expansão de restaurantes regionais que vemos hoje”.
Traldi ajuda a mapear parte dessa trajetória, que começa nas cozinhas migratórias de mães e avós, passa pela atenção que a gastronomia passou a receber com o sucesso midiático de chefs e programas gastronômicos, e pelo crescimento dos cursos de gastronomia e escolas especializadas, que receberam reforço na virada do século. Juntos, esses ingredientes ajudaram a compor o caldo que vêm temperando os cardápios de cidades como Salvador, Brasília, Recife, Rio de Janeiro e São Paulo.
Irina Cordeiro é uma síntese desse processo. A cozinheira trabalhou em grandes restaurantes e participou do maior reality show de gastronomia do Brasil, o Masterchef. Mas foi o tempero da avó, dona Chica, que inspirou a abertura do “Cuscuz da Irina” há quase um ano, na Vila Madalena, em São Paulo. “Eu cheguei em um momento que já tinha aprendido a fazer tudo que eu queria e passei a me perguntar o que preenchia o coração”, diz. “Foi aí que retornei para casa, para a comida afetiva que cresci comendo e queria que os outros comessem”.
A bandeira do nordeste está fincada em todos os cantos do restaurante, que exibe quadros e toca apenas músicas nordestinas. O best seller da casa, o cuscuz de carne de sol com nata, oferece a identidade do tempero sertanejo. Depois do sucesso da primeira unidade, o plano da chef é abrir franquias do “Cuscuz da Irina” em outras localidades. “Eu fico muito feliz que o regional tenha voltado como tendência”, afirma. “É um movimento que não está interessado nas maiores inovações culinárias, mas em recuperar o afeto e matar a saudade do prato cheio na mesa e todo mundo compartilhar, é uma comida que abraça”.
Essa ideologia também é defendida pelo DaSelva, restaurante que pretende familiarizar os paulistanos com as iguarias amazonenses. Com a primeira unidade fazendo sucesso em São Paulo, já se planeja a ampliação da casa e a distribuição de novas unidades pelo Brasil. “Queremos criar a categoria ‘comida amazônica’ como opção nos cardápios e deliverys”, afirma Yanna Freitas, sócia do restaurante. “É uma alimentação rica e cheia de possibilidades. E essa variedade de sabor, por si só, já é um trunfo”.
O cardápio conta com opções como a banda de tambaqui assada, pirarucu, açaí, farinha de Uarini e muitos outros produtos que compõem a essência do norte do Brasil. “Nosso propósito é fazer da dieta amazônica tão popular quanto a pizza”, diz Jorge Mojica Aguirre, um dos idealizadores do projeto. “É muito chocante que as pessoas estejam mais familiarizadas com salmão e kiwi do que com o tambaqui e o cupuaçu, que fazem parte da identidade brasileira”.
Tornar ingredientes dos biomas brasileiros conhecidos também é uma das propostas do Urus, que inaugurou sua primeira unidade há pouco mais de um ano. Empunhando a bandeira do Mato Grosso, o restaurante pretende ser um pedacinho do centro-oeste em São Paulo, trazendo opções como pintado grelhado com farinha de Uarini e molho de tamarindo, caju e baru, carbonara com queijos brasileiros e pimenta de macaco e, claro, as carnes, que vêm em cortes especiais, como o T-Bone e o Tomahawk. “Nossa ideia é justamente valorizar os biomas mato-grossenses, não só o Cerrado, como o Pantanal e a Amazônia”, diz Acilene Cunha Clini, uma das sócias do espaço.
Câmara Cascudo (1898-1986), historiador pioneiro nos estudos das tradições alimentares brasileiras, escreveu que “comer certos pratos é ligar-se ao local ou a quem os preparou”, reconhecendo as múltiplas dimensões culturais e afetivas da gastronomia. Agora, parecemos estar tomando o rumo certo ao mostrar que o protagonismo do arroz com feijão pode ser dividido com uma infinidade de outros sabores que compõem o tempero diverso do Brasil.