No início da existência humana, o ideal de beleza era intrinsecamente ligado a fatores que asseguravam a sobrevivência, como boa saúde e capacidade de procriação. Muitos séculos adiante, na Grécia Antiga, cultuavam-se as formas voluptuosas — modelo que, na Idade Média, derivou para feições e corpos delgados, modo de chamar menos atenção no capítulo histórico em que o zelo pela aparência tinha virado pecado.
E assim caminhou a humanidade, oscilando entre o roliço e o finíssimo, consagrado nos anos de 1960 pelo estilo Twiggy. A magreza segue em alta, acrescida à barriga chapada e, no Brasil, aos bumbuns bem recheados e seios pronunciados — além de narizes, queixos e bocas como manda o figurino. Ocorre que todo esse padrão, que passou a ser cada vez mais disseminado na era das redes sociais, é inatingível pelo conjunto de exigências que embute. E, então, uma crescente ala feminina, de longe a mais afetada, se revela infeliz com a imagem projetada no espelho. A insatisfação, de diferentes gradações, pode se converter em um transtorno que habita os escaninhos dos males que atingem a saúde mental. Antes cercado de tabus, o assunto começa a vir à luz com nome e tudo: transtorno dismórfico corporal ou simplesmente dismorfia.
Segundo a Associação Americana de Psiquiatria, o nó é amarrado pela autocrítica constante, acompanhada do desejo de mexer aqui e ali no corpo, depois no rosto, com a ajuda de bisturis e afins para alcançar uma perfeição que naturalmente nunca vem, por se tratar de um horizonte ilusório. A multidão feminina que já recebeu tal diagnóstico gira em torno dos 4 milhões no Brasil, mas sabe-se que o número é para lá de subestimado, já que apenas uma minoria — aquela turma para a qual o incômodo transborda de maneira exacerbada e angustiante — vai atrás de uma palavra médica. “Já perdi pacientes por não aceitar fazer um procedimento ou dizer que era hora de parar. Tem gente que omite intervenções anteriores, não se satisfaz com o resultado e quer mais e mais”, diz o cirurgião plástico André Maranhão.
Antes raridade, o uso de um questionário para avaliar se aquela pessoa que deseja intervenções em série está pisando no perigoso terreno da dismorfia começa a proliferar em clínicas dentro e fora do Brasil. O chamado Body Dysmorphic Disorder Examination mede a extensão do problema ao indagar à paciente quanto tempo ela dedica pensando em um traço físico que lhe desagrada, se tenta disfarçá-lo e, pior, se tem vergonha de frequentar locais em que ele ficará exposto, como a praia. Os holofotes são um frequente motor para o sofrimento, daí a elevada concentração de celebridades que, agora, vêm a público afirmar que penam com o transtorno. Eleita seguidamente a mulher mais sexy do planeta, a modelo americana Megan Fox, 37 anos, recentemente contribuiu para suavizar a cortina de fumaça que ainda ronda o tema ao revelar sofrer de dismorfia. “Nunca me achei bonita. Não me vejo como as pessoas me veem. A insatisfação com o meu corpo sempre foi uma obsessão”, disse.
A trilha para se livrar de tão indigesto fantasma passa por psicólogos e psiquiatras, auxílio ao qual outras famosas, como as estrelas pop Demi Lovato e Taylor Swift recorreram. “Era obcecada com a aparência desde muito jovem e o transtorno fez com que me afastasse de círculos sociais e me sentisse sozinha”, desabafou Swift. A incessante perseguição pelo padrão em voga, movida pela insegurança e pelo anseio de se moldar às expectativas em volta, começa cedo, como confirma um vasto estudo da faculdade de Psicologia da USP. Ele alerta que o descontentamento com a imagem pode ter início ainda na infância, mas ele se acentua mesmo após a primeira menstruação, junto ao turbilhão de dúvidas da adolescência. “Nessa fase, já era alta e magra, e minha aparência passou a me incomodar”, conta Jennifer Pamplona, 30 anos. Quando abraçou a carreira de modelo e desaguou nas passarelas internacionais, aos 18, o desconforto ganhou novos contornos. De acordo com suas contas, ela já gastou uns 6 milhões de reais em uma lista de procedimentos que inclui três cirurgias nos seios, mais três rinoplastias e oito retoques no bumbum. Certa vez — quando ocorre com tanta gente que exagera na dose — teve uma infecção e passou um período internada, com o rosto deformado.
Um forte empurrão à indústria das intervenções estéticas vem das novas técnicas, que não param de surgir, ainda caras, mas a preços mais acessíveis do que no passado. A mais recente pesquisa da Sociedade Internacional de Cirurgia Plástica mostra que, só em 2021, foram realizados 30 milhões de procedimentos no mundo — numero colossal que expressa uma subida de 20%. O Brasil só perde para os Estados Unidos no ranking de tão elevada procura: aqui, foram registrados 2,7 milhões de intervenções no mesmo ano, quase metade delas de natureza cirúrgica. De todas as modalidades, a mais almejada é a lipoaspiração, seguida do implante de silicone nos seios e de operações nas pálpebras. “Apesar da liberdade de escolha conquistada pelas mulheres, percebemos que muitas acompanham a onda e vão parar em consultórios na busca do tal padrão de beleza”, observa o antropólogo Bernardo Conde, da PUC-Rio.
As engrenagens da obsessão encontram nas redes um decisivo impulso, uma vez que ali se instala um palco de modismos e exaltação de irreais conceitos estéticos que ganham projeção global. Um mar de insegurança se forma quando influencers como a modelo Yris Araújo, 23 anos, exibe o resultado de intervenções diversas a seu quase meio milhão de seguidores. Curiosamente, ela também se vê vítima do mesmo sistema de busca insaciável pela aparência perfeita de que faz parte. “Há procedimentos que melhoraram minha autoestima, mas me sinto o tempo todo cobrada a fazer o que está em voga”, admite ela, que já aumentou os seios, fez lipoaspiração, harmonização facial, Botox preventivo e pôs facetas nos dentes e extensor nos cílios. “O horror à exclusão social movimenta tudo isso, numa lógica mercadológica cruel que associa a ideia de beleza ao sucesso na vida”, afirma a psicanalista Joana de Vilhena Novaes, especialista em doenças da beleza.
O coquetel que mescla ansiedade, angústia e medo da rejeição por não se encaixar em uma certa forma já fez muita gente dar um passo atrás, reconhecendo o contrassenso que reside no exagero. A atriz Paolla Oliveira, 41 anos, conta ter sofrido muito até “desencanar” e cessar a longínqua batalha travada contra as coxas grossas, das quais não gostava. Com Bruna Marquezine, 27 anos, a questão era preservar a extrema magreza, o que a levou às prateleiras dos laxantes, ingeridos diariamente. “Hoje não ouço mais a opinião alheia”, garante. Depois de se submeter a cirurgias invasivas, como um implante de silicone nos seios e uma lipoaspiração nas laterais do abdômen, a atriz Deborah Secco, 43 anos, avalia que “a maturidade lhe trouxe mais segurança”. “Estou com menos massa muscular, com a bunda mais molinha, recebo um monte de críticas, mas sou hoje a mulher que eu quero ser”, afirma. Como em tudo na vida, a chave está no equilíbrio — ainda que seja difícil, no atual império das selfies, deixar o espelho de lado.
Publicado em VEJA de 14 de Junho de 2023, edição nº 2845