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Positividade tóxica: os males de quando a felicidade se torna ditadura

Onipresente na autoajuda e nas redes sociais, fenômeno entra na mira de movimentos que combatem o discurso da busca do bem-estar a qualquer preço

Por Amanda Capuano Atualizado em 14 abr 2022, 12h57 - Publicado em 14 abr 2022, 06h00

Kat é uma jovem acima do peso. Em crise no relacionamento, ela busca justificativas para a falta de interesse no namorado e conclui que o problema está nela. Assim que o pensamento lhe atravessa a mente, contudo, mulheres esbeltas e com pose de gurus e influenciadoras aparecem na tela repreendendo a garota. “Você precisa derrubar os padrões de beleza”, diz uma. “Eu mal consigo sair da cama”, rebate Kat, antes de ser engolida por um coro ensurdecedor daquelas assombrações da cultura fitness e da autoajuda, bradando que ela precisa amar a si mesma. A cena é uma passagem da segunda temporada de Euphoria, série de enorme sucesso da HBO sobre as agruras da juventude atual. Mas o trecho antológico fala de um fenômeno mais amplo e universal: a positividade tóxica, termo depreciativo que se popularizou como sinônimo da mentalidade “good vibes”, aquela que prega o amor-próprio, a felicidade e o pensamento positivo acima de qualquer coisa, inclusive dos próprios sentimentos. Kat, vivida pela brasileira Barbie Ferreira, é uma personagem fictícia. A verdade é que há muitas pessoas como ela na vida real.

Positividade tóxica

Segundo uma pesquisa recente feita em quarenta países e publicada na revista Nature, a pressão social para ser feliz está associada, quem diria, a uma queda do bem-estar individual, especialmente em países com índices elevados de felicidade coletiva. Via de regra, a positividade tóxica funciona na base do discurso motivacional. Ao expressar sentimentos negativos, a pessoa é confrontada com frases como “veja pelo lado bom”, “nada é completamente ruim” e discursos que negligenciam o sofrimento, colocando-o, ilusoriamente, como uma escolha e não como um dado da realidade a ser encarado. Para denunciar essa epidemia de positividade forçada, o psicólogo dinamarquês Svend Brinkmann debruçou-se sobre o tema no livro Positividade Tóxica — Como Resistir à Sociedade do Otimismo Compulsivo, lançado no Brasil neste mês pela editora BestSeller. Svend descreve a obra como um título “antiautoajuda”, e pretende oferecer alívio a quem se sente pressionado a exibir um sorriso no rosto a todo custo. “Nos tornamos estúpidos quando não nos permitimos falar sobre coisas que dão errado”, disse ele a VEJA (leia abaixo).

DISCUSSÃO POP - Kat (Barbie Ferreira), na cena da série Euphoria: sensatez ameaçada por influencers, gurus e afins -
DISCUSSÃO POP - Kat (Barbie Ferreira), na cena da série Euphoria: sensatez ameaçada por influencers, gurus e afins – (./HBO)

Em alta nas redes sociais desde o início da pandemia, esse comportamento tem raízes na psicologia positiva, fundada entre o fim dos anos 1990 e início dos anos 2000 por Martin Seligman, então presidente da Associação Americana de Psicologia. No seu manifesto Psicologia Positiva: uma Introdução, Seligman afirmava ter a missão de criar uma ciência da felicidade, que investigaria as chaves para o sucesso do ser humano. No livro Happycracia: Fabricando Cidadãos Felizes, recém-publicado no Brasil pela editora Ubu, a socióloga Eva Illouz e o psicólogo Edgar Cabanas dissecam a quimera inventada por Seligman e suas ramificações sociais. Um exemplo é o filme À Procura da Felicidade (2006), inspirado em Christopher Gardner, afro-americano que saiu da pobreza e se tornou homem de negócios bem-sucedido valendo-se do discurso de que o sucesso depende só de ignorar as mazelas e focar o lado bom da vida. Essa mentalidade alimenta um mercado lucrativo. “A felicidade virou mercadoria. Coaching, mindfulness, livros de autoajuda, psicoterapia positiva e aplicativos para smartphones são apenas alguns exemplos de um mercado de 4,2 trilhões de dólares, e que cresce 6,4% ao ano”, explicou Cabanas a VEJA.

Ética a Nicômaco

Antes da virada deste século, a Amazon listava não mais que trezentos livros com a palavra “felicidade” no título. Hoje, a lista inclui mais de 2 000. O mesmo vale para o número de tuítes e posts no Instagram ou Facebook. Exemplo fatídico dessa positividade exacerbada foi uma postagem de 2020 da influenciadora digital Gabriela Pugliesi, uma das primeiras celebridades diagnosticadas com Covid-19 no Brasil. Na época, ela fez uma publicação “agradecendo” ao vírus e outra destacando os “benefícios” da pandemia. “Algo invisível chegou e colocou tudo no lugar”, escreveu. Criticada nas redes, ela apagou as postagens e se justificou dizendo que sempre busca tirar algo positivo das situações — tal frase, aliás, é um mantra da positividade tóxica.

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MUSA POSITIVA - Gabriela Pugliesi: detonada nas redes por “agradecer” ao coronavírus após se infectar -
MUSA POSITIVA - Gabriela Pugliesi: detonada nas redes por “agradecer” ao coronavírus após se infectar – (@gabrielapugliesi/Instagram)

O problema, do ponto de vista social, é que a positividade exagerada pode jogar para escanteio a empatia e a noção de realidade. Em 2020, o Brasil registrou o menor índice de felicidade em quinze anos na pesquisa “Bem-Estar Trabalhista, Felicidade e Pandemia”, da FGV Social. A queda foi de 0,8% entre os 40% mais pobres, enquanto houve aumento nos 20% mais ricos, mas de apenas 0,1%. “A indústria da felicidade não consegue nos vender uma mudança social, mas pode vender dicas, orientações e receitas para realizarmos uma mudança pessoal. É uma ideia egoísta de felicidade”, diz Cabanas.

Esse embate, inclusive, já existia na Grécia Antiga. No livro Ética a Nicômaco, Aristóteles, pupilo de Platão, critica o idealismo romântico do mestre e aponta saúde, liberdade e finanças como pré-requisitos para a felicidade de fato. A cobrança para ser sempre positivo também pode acarretar problemas psicológicos sérios, como ansiedade ou depressão, adverte Brinkmann. Mas, então, existe um caminho menos enganoso para o ser humano encarar a existência? Para o psicólogo, a resposta está na visão pragmática da vida propalada pela escola filosófica grega do estoicismo: ter serenidade, se ater à razão e àquilo que é controlável, não fugindo aos problemas. Brinkmann acena, ainda, com uma tática bem mais prática: “Demita seu coach”. Viver cada sentimento a seu tempo é, no fim das contas, o melhor antídoto contra a positividade tóxica.

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“Um problema é só um problema”
O dinamarquês Svend Brinkmann, autor de ‘Positividade Tóxica — Como Resistir à Sociedade do Otimismo Compulsivo’, falou a VEJA sobre o tema

ALERTA - Svend: cruzada antiautoajuda -
ALERTA – Svend: cruzada antiautoajuda – (./Divulgação)

O que é positividade tóxica? É a demanda contemporânea de que as pessoas devem focar sempre as coisas boas, em vez de levar problemas em conta. Existe uma mentalidade de que, se você focar em aspectos negativos, eles vão ser inflados. Há certa verdade nisso, mas é problemático pregar que não podemos nos abalar com os problemas.

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Como isso se aplica na prática? De várias formas, até na linguagem. Há quem diga que não podemos chamar situações difíceis de problemas, mas de desafios, oportunidades de aprender e evoluir. Algumas vezes, um problema é só um problema. Nos tornamos estúpidos quando não nos permitimos falar sobre as coisas que dão errado.

Quais são as consequências disso? Reprimir sentimentos pode destruir seu aparato emocional. Quando tentamos ser felizes no momento em que estamos tristes, cometemos uma violência contra nós mesmos. A pessoa pode ficar estressada, ansiosa e até depressiva, além de embarcar em um ciclo de culpabilidade por não ser positiva o suficiente para mudar isso. E ainda há uma questão social mais ampla.

Qual? A positividade tóxica prega que podemos definir nosso destino se formos positivos e buscarmos o sucesso. Isso é perigoso porque deixamos de ter empatia. Se cada um molda a sua vida, não há motivo para ajudar quem supostamente não se esforçou para isso.

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A internet é um lugar onde todos parecem felizes. Qual o impacto das redes nessa cultura? Elas são um palco onde nos apresentamos da melhor maneira possível. Não é legal ser rabugento. Você precisa ser bem-humorado, bonito e positivo. Há um movimento contrário a isso reivindicando a imperfeição, mas é uma briga difícil.

O senhor descreve seu livro como “antiautoajuda”, um gênero que vende muito. A positividade virou uma indústria? Sim, e vemos isso nos livros de autoajuda, em coaches de vida feliz, na terapia e até em cursos de desenvolvimento pessoal. Também enxergo como uma religião, na qual em vez de Deus o indivíduo é absoluto e deve ser adorado. Muitas pessoas lucram com a pressão para sermos a melhor versão de nós mesmos e com o sentimento de inadequação que temos quando não somos positivos ou motivados o suficiente.

E o que podemos fazer? Aceitar que existem problemas no mundo e precisamos falar sobre eles. Não falo, óbvio, em negatividade o tempo todo. Devemos ser felizes quando coisas boas acontecem, mas precisamos ser críticos e negativos diante de coisas ruins, até para compreendê-las melhor.

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Publicado em VEJA de 20 de abril de 2022, edição nº 2785

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