Carta ao Leitor: A invasão brasileira
O número de brasileiros morando em Portugal dobrou nos últimos dez anos, passando de 105 000 para mais de 210 000. Isso sem contar os imigrantes ilegais

Do descobrimento ao século XX, o fluxo migratório entre Brasil e Portugal foi intenso, mas sempre numa mesma direção. Ao longo desses séculos, milhões de portugueses partiram da Europa para fincar raízes no Brasil, deixando uma profunda herança para a nossa cultura e também na identidade do povo brasileiro. São sinais que se revelam nas igrejas, no urbanismo, na gastronomia, na organização do Estado, do Judiciário e até em times de futebol. Um dos momentos de maior evolução do Brasil aconteceu, aliás, após a chegada da família real, que fugia da invasão de Napoleão Bonaparte e acabou acelerando nosso processo de independência (que, em breve, completará 200 anos). Durante todo esse período, o Brasil era visto como a terra das oportunidades para os portugueses, um lugar para crescer, talvez enriquecer, criar a família e adotar como pátria.
No momento, vivemos uma situação absolutamente inversa a essa. O número de brasileiros morando em Portugal dobrou nos últimos dez anos, passando de 105 000 para mais de 210 000. Isso sem contar os imigrantes ilegais, que podem fazer com que essa quantidade chegue a 400 000 pessoas. Trata-se da maior “invasão” brasileira já registrada na história. É fato que existem mais imigrantes nossos nos Estados Unidos, cerca de 1,8 milhão. Mas o tamanho dessa comunidade em comparação com o de grupos de outras nacionalidades e também com o total da população americana (330 milhões) dá um peso muito menor à sua influência. No caso de Portugal, um país pequeno, com apenas 11 milhões de habitantes, a presença dos brasileiros pode ser vista em todas as grandes cidades, com relevante impacto nas mais diversas áreas.
Como mostra a reportagem que começa na página 54, a onda brasileira pôs em andamento um processo de transformação das preferências e hábitos dos portugueses. Na arquitetura, surgem condomínios fechados de casas com piscina, um modelo brasuca que começa a conquistar os gostos locais. Na cultura, artistas e influencers digitais brasileiros ganham adeptos em todas as faixas etárias, provocando o aparecimento de um sotaque nas crianças portuguesas semelhante ao nosso. Até na gastronomia, uma qualidade lusitana indiscutível, há mudanças curiosas. Antes desprezados, certos acepipes verde-amarelos, como a coxinha de frango e o brigadeiro, ganham espaço nas mesas. Evidentemente, há aspectos positivos nesse fenômeno migratório e nos desdobramentos que estão acontecendo. Mas fica uma importante reflexão que deveria pautar o programa dos candidatos desta eleição: com tanta necessidade de crescimento econômico, não seria o Brasil que deveria estar atraindo imigrantes de outros países em vez de exportar seus cidadãos? Tomara que os postulantes à Presidência respondam a essa e outras perguntas até outubro.
Publicado em VEJA de 29 de junho de 2022, edição nº 2795