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Vida de Imigrante

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Alegrias e agruras da maior diáspora brasileira da história, a partir do olhar de um entre os 5 milhões que formam o fenômeno.
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O primeiro desafeto estrangeiro

Ninguém precisa dar cadeirada, mas nos debates da vida é importante colecionar inimizades — eis a prova suprema da adaptação ao novo país

Por Edison Veiga 19 set 2024, 07h01
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  • Estão enganados os que pensam que você se adapta a um novo país quando faz novos amigos. A verdadeira inserção de um imigrante na vida local é, na verdade, quando são erigidas as primeiras inimizades.

    Não, ninguém aqui está defendendo a violência. É possível debater até com as piores mentalidades sem apelar para uma cadeirada em rede nacional. Dá para entrar em tretas inclusive quando os times de futebol não são exatamente aqueles do campeonato que você sempre acompanhou. É possível construir lindas desavenças mesmo longe dos bolsominions.

    Refiro-me àqueles desentendimentos puros, dos tempos da briga-arte, a briga-moleque. A briga que dribla mas nem sempre chuta para o gol. O solerte olhar torto para alguém da vizinhança, aquele não gostar quase sem explicação, a irritação que dá até para engolir — mas não passa, principalmente porque no dia seguinte você vai encontrar a desgraça novamente no caminho até o mercadinho da esquina.

    Minha primeira desavença na vida de estrangeiro foi com Signore Mazzolla, o dono da pequena loja de materiais de construção e tranqueiras correlatas que ficava a pouco mais de três quilômetros da minha casa. Fazia menos de um mês que eu havia mudado para lá e morava em um apartamento que não era nenhum primor (para ser sincero, seu interior era um universo paralelo onde o tempo havia congelado décadas atrás e os móveis então iniciaram um protesto decrépito).

    Havia algumas urgências que eu tinha de fazer caber no mirrado orçamento de recém-emigrado. E para cada coisa nova acabava aprendendo uma palavra nova também. Uma sina. Por exemplo, nem me lembro para quê eu precisava de um funil. E percebi que nenhum mercado das redondezas vendia o danado do imbuto. Nem lembro quando ou onde eu achei o meu, mas é o que tenho até hoje em casa, como se fosse um troféu do Duolingo.

    Outra urgência era um suporte para encaixar a ducha do chuveiro. Pois é, não tinha. Tomar banho era segurando a ducha com uma mão e lavando-se com a outra. Sou alto míope, já não enxergo muita coisa durante o banho. Tudo isso junto, em um box apertado de um banheiro mal iluminado, e eu estava me sentindo um malabarista do chuveiro. Um desastrado mal malabarista, urge ressaltar.

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    Pensei que seria fácil encontrar o tal suporte. Coisa que, para dizer a verdade, nem em português eu sei o nome específico. Fui lá no Signore Mazzolla. Era daquelas lojas italianas peculiares, a começar pelo nome, Non Solo Ferramenta, indicando que havia um amplo etcetera naquelas prateleiras empoeiradas. Mas também pelo horário de funcionamento — fecha às segundas; de terça a sexta funciona das 10h às 13h e das 15h30 às 18h30; aos sábados só das 10h às 12h.

    Atento a esse modus operandi sui generis, programei minha caminhadinha para casar com uma das janelas de Signore Mazzolla Non Solo Ferramenta aperta, non chiusa. Terça, às 15h42: estava fechada com um aviso na porta, algo como “volto em breve”. Aguardei 27 minutos. Decepcionado, desisti.

    Quarta, 10h57: novamente fechada, sem aviso na porta nem nada. Quinta, 12h30: nem sinal de ninguém dentro, até espiei pelas vitrines cheias de quinquilharias expostas. Sexta, 17h. Nada, nadinha, nem aviso nem sinal de alguém. Eu cabisbaixo desistia, resignado ao meu banho maneta e mambembe, vai ver é o estilo europeu, sempre ouvimos que não são muito afeitos a banho, blá blá blá e tal.

    Uma senhorinha apoiada no peitoril da bucólica finestra da casa em frente acenou, me chamando e abruptamente resgatando-me de meus solilóquios:

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    – Não vem hoje.

    – Ahn? — olhei como quem buscava entender, meu italiano macarrônico, minha surpresa pela bisbilhotice, meu espanto misturado ao ódio pelas ausências do velho Mazzolla.

    – Não vem hoje. Morreu uma tia dele, estava mal já, 93 anos, Alzheimer avançado…

    Se eu desse corda, a senhorinha me daria a ficha completa de todas as gerações da família Mazzolla. Ainda iria se espantar que eu sou brasileiro, contar que um parente do Signore Mazzolla, veja só, tinha feito o caminho inverso ao meu e, dizem por aí, ficara muito rico em São Paulo. Agradeci, demonstrei desinteresse, rumei de volta para casa. Segunda seria meu ultimato. Segunda, não, cazzo, segunda ele nem abre a loja…

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    Terça-feira seguinte cheguei faltando cinco minutos para as 10h. Queria ser o primeiro cliente, se ele abrisse para algum cliente. Signore Mazzolla apareceu com apenas um minuto de atraso, resmungou qualquer coisa quando eu cumprimentei com meu buongiorno imigrante, acenou para que eu aguardasse fora enquanto ele entrava, acendia as luzes, pendurava o chapéu e o casaco, posicionava-se meticulosamente atrás do balcão, caixa registradora à frente, televisorzinho míni ao alcance dos olhos, vazio da vitrine entre ambos que permitia uma bissexta espiada de soslaio no movimento da rua.

    Sete minutos e 32 segundos depois ele se lembrou de mim, fez como se fosse um psiu baixinho e com as mãos secas e calejadas desenhou no ar um sinal de venha cá. Limpei os pés nos tapetes, havia ainda pelas ruas um resto de neve derretendo que enlameava o solado, repeti meu bom-dia, que desta vez ele respondeu.

    Falava de canto da boca. Ou era tique de fumante inveterado ou era pouca vontade de pronunciar corretamente as palavras, lembro que pensei. Signore Mazzolla não olhou para meus olhos mas perguntou o que eu queria. Era ranzinza, logo confirmei. Expliquei meu problema de cunho higiênico-sanitário, ao que ele ajeitou os óculos e deu o diagnóstico: o que eu precisava, e nem sabia pedir tampouco em português, era uma asta saliscendi per doccia. E, não, ele não tinha.

    – Tem, mas acabou — bufou, completando com um “volte depois de amanhã”.

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    Perdeu mais um cliente para o comércio eletrônico

    Não sei por qual motivo eu insisti, visto que àquela altura a indisposição entre nós dois já estava consolidada e eu tinha um cansaço de qualquer nova interação com Signore Mazzolla. Mas quinta-feira estava lá, ouvi outro não, agora volte amanhã. Chegou sexta e brindou-me com outro não. Venha segunda, segunda não que eu não abro, venha terça, sem falta.

    Terça da semana seguinte, Signore Mazzolla tinha outro discurso. Olhava-me com raiva, como se eu devesse ter desistido diante de tantas negativas. Resiliente o brasiliano. E disse que eu não precisava de uma asta saliscendi per doccia, tinha era de trocar o chuveiro. E chuveiro ele tinha, veja só.

    Argumentei que meu apartamento era alugado, algo temporário, o proprietário não iria pagar um chuveiro novo, meus rendimentos de recém-emigrado não justificavam tamanho investimento, aquela ducha que eu tinha estava boa até. Então ele perguntou por que eu não me contentava com o que tinha, que ideia absurda instalar uma asta saliscendi per doccia, podia muito bem seguir tomando banho daquele jeito, temos de aceitar os desígnios de Deus, amém.

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    A certo ponto nossa discussão se tornou tão surrealista que eu disse que não seria ele a ensinar a mim, brasileiro, com meu sangue indígena talvez, a tomar banho corretamente. O clima azedou de vez e eu me vi resignado a permanecer naquela situação de ducha precária por mais alguns dias.

    Non Solo Ferramenta perdeu um cliente, mais um, para o comércio eletrônico internacional, que me vendeu facilmente, a preços módicos e devidamente entregue em casa, uma asta saliscendi per doccia. Signore Mazzolla ganhou mais uma inimizade para sua coleção — desconfio que extensa, dada a rabugice.

    Passei a mudar de calçada quando o via. Evitava aquela rua nos horários em que sua loja podia estar aberta (o cronograma de funcionamento mantive de cor).

    Estava devidamente aclimatado ao novo país. Já tinha meu primeiro desafeto.

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