Os incríveis bastidores dos efeitos visuais de ‘Senna’, sucesso da Netflix
Série reproduz corridas de Fórmula 1 pelas mãos de Marcelo Siqueira, especialista em pós-produção
A série Senna, da Netflix, sobre o piloto de Fórmula 1 Ayrton Senna (1960-1994) tem arrancado elogios por conta da reprodução de corridas que marcaram a carreira do brasileiro em autódromos de todo os cantos do mundo. O responsável por trazer essa realidade para as telas é Marcelo Siqueira, 52 anos, sócio-diretor da Mistika e especialista em pós-produção e efeitos visuais. Sica, como é conhecido, conta à coluna GENTE um pouco dos bastidores e desafios de fazer os efeitos da produção, que considera um divisor de águas para a indústria cinematográfica brasileira.
Como você entrou na produção? Em setembro de 2022, o Vicente [Amorim, diretor da série] me ligou e falou que tinha um projeto e precisava de indicações. Achou que eu não abriria mão do que estava construindo na empresa. Ele, então, me convidou e eu deixei o Mistika Post com a minha irmã para entrar de cabeça nesse projeto. Lá, assumi uma posição grande, que era de produção e supervisão de efeitos visuais.
E como começou o trabalho no projeto? A gente foi para Buenos Aires [Argentina] para as primeiras visitas de locação e precisava encontrar que trecho de cada corrida caberia em cada pedacinho das pistas, porque a gente não tem mais os autódromos como antigamente. Precisava, por exemplo, da Interlagos de 1990. Por isso, fizemos pesquisa de locação nuns 15 autódromos para encontrar o que precisava. Nesse tempo, montei time de pré-visualização, que, usando tecnologia de games, começou a recriar as corridas. No set de filmagem, tinha um aplicativo onde conseguia visualizar, por meio de realidade aumentada, o que queria em relação às pistas, arquibancadas e carros, na escala. Uma coisa que me preocupava era a largura das pistas, pois tinha que conduzir algo real. A gente foi em autódromos de todos os tamanhos e colocava os carros ali. Com iPad, conseguia ver em tempo real o que estava acontecendo, como e onde se comportava. Elegemos o autódromo de Buenos Aires, porque nos atendia , tinha o S do Senna e várias curvas importantes.
Quantas pessoas na equipe? Começou com três pessoas, e no final das contas tinham 1.164.
Quais foram os maiores desafios? A gente contou com a ajuda de uma empresa da Netflix de fora, que está acostumada a fazer conteúdos da Marvel. Começamos com dois mil shots de efeitos, que é a quantidade que Marvel coloca nos projetos deles. Isso já foi um grande desafio. Mas tivemos também que começar a gravar [cenários] dos anos 1970, passando por uma quantidade de cenários e locações diferentes. Suzuka [no Japão], por exemplo, a gente mostra três anos de corridas, 1988, 1989 e 1990, mas o autódromo muda nesses três anos.
O senhor citou a Marvel. Podemos comparar o trabalho de Senna com Os Vingadores, por exemplo? Não é diferente disso, porque a quantidade de planos que a gente tem de efeito é grande. No caso da Marvel, eles fazem uma animação que vai do começo até o fim do filme. No nosso, não. A gente, por exemplo, construiu fisicamente 22 carros, praticamente dois para cada corrida que ia retratar, do Senna e do opositor dele.
Qual foi a cena mais desafiadora? A corrida de Suzuka, de 1984. E divido ela em alguns pedaços. A gente não tinha colocado chuva como questão no briefing, mas ia filmar muitos carros com chuva. Na hora, a gente se deparou com a dificuldade que era inundar esses lugares. Fizeram um teste muito bom de chuva com computação gráfica, aí vimos que estávamos seguros. Precisava chover muito. Então a gente fez isso no estacionamento de um aeroporto no Uruguai. Eles fecharam o teto todo para poder fazer sombra. Além de filmar 1988, a gente filmou 1984, que era com sol. Se não me engano, a gente tinha 30 mil litros de água e ainda tinha mais 30 mil de stand-by. Toda essa estrutura montada, e carro passando ali a 120 a 140 quilômetros por hora, foi tudo real. Misturamos isso com muita filmagem LED. Imagina um estúdio com chuva, carro tremendo, mais cenas de computação gráfica e filmadas? Foi um desafio.
O senhor já tinha feito algo comparado a isso? Não posso dizer isso, porque ninguém fez algo desse tamanho no Brasil. Fiz novelas para a Record, bíblicas e cheias de efeitos, e fiz a transmissão do Rock in Rio em 2001. Mas desse tamanho, com essa complexidade toda e tão internacional… não. No final das contas, a gente estava em um set que olhava para um e falava inglês, com o outro em espanhol e o outro em português… A gente ia conduzindo um negócio gigantesco com uma equipe enorme. Isso aí nunca tinha feito.
Já acompanhava corrida de Fórmula 1? Sempre gostei, mas depois que o Senna morreu, dei uma baixada na bola. Assistia muito com meu pai, lembro direitinho a gente chegando em Interlagos, isso deve ter sido em 1980, tinha corridas de stock car, entrava com o carro quase dentro da pista e ficava olhando lá de cima, adorava.
O Brasil não tem muito investimento em tecnologias de animação. O senhor acha que o streaming ajudou nisso? Acho que sim. Até se usa de efeitos visuais, mas nunca em magnitude desse tamanho. Os streamings vieram com força e demandando muito. Teve um boom gigantesco desse mercado de efeitos visuais de pós-produção, por conta dos streamings, sem dúvida nenhuma, porque os orçamentos ficaram maiores. O orçamento de um longa-metragem nacional independente, que não tenha streaming por trás, deve ser oito milhões de reais. O que acho que veio bacana dos streamings, e principalmente da Netflix, é que eles te trazem a demanda, te trazem o acesso ao conhecimento do que você não tem. Isso é maravilhoso. Quando comecei a orçar o projeto, a ideia era ter quase inteiro no Brasil e América Latina. Depois o negócio cresceu, e a gente acabou expandindo essa mentalidade, acabou ficando três empresas no Brasil e mais algumas fora.
Seria possível gravar Senna sem essa tecnologia? Não ia entregar a mesma coisa se não tivesse tanta tecnologia envolvida. A gente teria outro tipo de experiência. Não seria tão imersivo e com tanta energia, velocidade e a realidade das frações de luz.
Senna pode ser um marco para a indústria brasileira? Tenho certeza que é um marco na história do Brasil, principalmente no mundo do audiovisual e efeitos visuais. Eu participei de um evento recentemente com 180 pessoas no mercado, contando para eles como foi essa experiência. Uma pessoa que estava na plateia fez uma pergunta para o pessoal do Scanline [empresa alemã de efeitos visuais], que estava lá, se a entrega do jeito que está esse projeto, o Brasil se coloca, do lado de fora, como tendo capacidade de entregar para qualquer tipo de projeto no mundo, e eles falaram: “tenho certeza que sim”.
Como é a atuação da sua empresa? Montei para ser uma empresa de pós-produção e efeitos só para entretenimento. Hoje temos sede em São Paulo e Rio, a gente é responsável por todas as novelas da Record em estrutura independente lá dentro, deve ter mais ou menos 80 pessoas trabalhando fixas. Dentro da Mística, a gente criou uma divisão, que chamamos carinhosamente de Místika Zip, mais enxuta, com o propósito de trabalhar projetos incentivados.
Quais foram os trabalhos mais emblemáticos? A novela Jezabel, da Record, foi grande, porque foram 80 capítulos em oito meses, com muitos efeitos. A gente fez também projetos grandes com reality shows, como Casamentos às Cegas, da Netflix.
E quais são os próximos projetos? Eu não posso falar os nomes ainda, mas tenho uma na Espanha, outro em São Paulo. Hoje estou fazendo uma série de animação para a Disney. São 52 episódios que já começaram a estrear agora no Disney Channel, depois vai para o Disney Plus, que é o Lino, jogo que foi sucesso no 2017. Essa animação rodou , pelo menos, 40 países nas salas de cinema do mundo inteiro. E agora a gente tá fazendo uma série.
Mas do mesmo nível de Senna? Não existe do mesmo nível. Os dois são complexos, não vou falar que são fáceis, não. Os dois são bem complexos, mas é impossível comparar alguma coisa com o Senna. Só se compara a projetos grandes de fora, como The Crown. Foi como ele foi encarado, no final das contas, sabe? Como um projeto grande.
O que o senhor espera de 2025 para o setor de efeitos especiais e animações? Os projetos vão começar a olhar pra cá com essa intenção e demandar do Brasil. O que é interessante, porque vai fazer crescer o mercado local. O que aconteceu nos últimos anos é que os talentos foram embora do Brasil. Tenho pessoal em Fortaleza que prefere morar em Fortaleza, porque tem uma qualidade de vida melhor do que São Paulo. E está trabalhando no mesmo país. Obviamente que ele ganha daqui para lá, é diferente o custo de vida dele lá e ele aqui. E o remoto funciona e é super bom. Se você começa a fomentar o trabalho no Brasil, a gente tem um custo melhor do que lá de fora, esses talentos vão começar a voltar pra cá. Então, pega uma produção que pode ser rodada em qualquer lugar e fala assim: vou fazer a pós-produção dos efeitos no Brasil, o governo te devolve isso como crédito, porque para ele é ótimo. Será muito bom para indústria dos efeitos.