Meu marido sempre foi um leitor voraz. Chegava a mandar vir de Portugal livros que ainda não haviam sido lançados no Brasil. Ele assinava três jornais e revistas. Devorava tudo assim que acordava. De repente, numa manhã, a gente estava tomando café e comecei a perceber sua mão mais trêmula. Ele viu em um dos jornais a foto de uma manifestação e me perguntou o que eram aquelas letras embaixo da imagem. Respondi, surpresa: “Como assim, meu amor? Isso é a legenda da fotografia”. E aí ele seguiu: “O que é uma legenda?”. O episódio me arrepiou, como uma ficha que cai. Percebi que os lapsos de memória recentes tinham evoluído para outro estágio, algo mais sério. Maurício perdeu de vez a capacidade de leitura. E parou também de usar o celular, porque começou a mandar mensagens e fotos para pessoas erradas. Entendi que ele estava mudando, e rapidamente. Há menos de um mês, aos 79 anos, parou de falar. É do que mais sinto falta — dividir com ele suas descobertas do mundo.
Passei a ajudá-lo em sua comunicação com as pessoas. Sozinho, não dava mais. Procurei terapias desesperadamente, para ele conseguir lidar com tudo isso. É difícil diagnosticar uma doença dessas. Primeiro nos disseram que era Alzheimer, mas não me convenci. Maurício manteve por muito tempo a consciência do que estava acontecendo. Tanto que, no meio da pandemia, depois de quase duas décadas de um relacionamento em casas separadas, ele propôs: “É hora da gente morar junto. Estou esquecendo as coisas”. Estávamos investigando sua doença, até que, após ouvir vários médicos, finalmente bateram o martelo: era demência frontotemporal, DFT. Não dá para prever a velocidade com que ela avança. Com Alzheimer, a pessoa pode viver uns vinte anos. Já com essa demência, dizem que a média é de quatro anos. Maurício já está há sete nessa luta.
Em 2019, ele decidiu sair da Globo. Sempre lidou muito bem com o improviso ao vivo, só que toda hora dava um branco, e a equipe não sabia como reagir. Não conseguia mais ligar o computador. Um dia, ele me disse: “Não quero mais ir para lá, ninguém fala comigo. Estão sugerindo que eu repita o texto dos outros”. Sei quanto ele amava o quadro que tinha no Fantástico. Fez tanto sucesso que até hoje o param na rua e pedem para fazer foto junto dele. Nos últimos meses, ainda se surpreendia com a recepção das pessoas. “Aquele Maurício devia ser importante, né?”, costumava falar. Era outra vida, e ele tinha essa noção. É tudo muito doído. Nos conhecemos em um site de relacionamento, e ele me trouxe o amor de volta. Era direto. No primeiro encontro, já queria que ficássemos juntos para toda a vida. Hoje, vivo com um Maurício diferente a cada dia, mas continuo o amando com a mesma intensidade.
Ele virou um menino desobediente e muito, muito criativo. Sua história, que inclui os tempos atuais, está no documentário Kubrusly — Mistério Sempre Há de Pintar por Aí, prestes a estrear no Globoplay. Assistimos lado a lado, na Mostra de Cinema de São Miguel do Gostoso, no Rio Grande do Norte, quando foi apresentado pela primeira vez. Ele ficou quieto, olhando o tempo todo para a tela. Antes, se eu lhe mostrava as reportagens que fez, reagia, com certo orgulho: “Parece que esse cara fez muita coisa boa”. Espero que tenha sido essa a sensação de agora. Numa situação como a que estamos passando, a morte é um assunto. Maurício chegou a mencionar seguir o mesmo caminho escolhido por Antonio Cicero (escritor que optou pela eutanásia). “Não tenho mais o que fazer aqui”, disparou certa vez. Eu o demovi da ideia. Não vou ficar viúva, não. Mas estou me preparando para o dia em que ele esquecer meu nome.
Beatriz Goulart em depoimento a Valmir Moratelli
Publicado em VEJA de 29 de novembro de 2024, edição nº 2921