De Gen V a The Pitt: por que a TV vive a era das séries desconfortáveis
Da chocante visão sobre o autoritarismo à rotina estressante dos médicos, uma nova tendência invade a televisão
Nos dicionários, a palavra desconforto tem descrição ampla: é o estado de quem demonstra incômodo, desânimo, abatimento, desalento e desconsolo. Transposto para o audiovisual, ele exprime aquela sensação de soco no estômago que sentimos ao assistir a uma série capaz de dissecar na ficção as dores e loucuras da realidade. E não faltam tramas do tipo: dos riscos das redes sociais ao avanço da extrema direita no mundo, passando pelos altos e baixos da saúde mental, tramas afiadas que levantam reflexões tão necessárias quanto preocupantes estão em alta no streaming e integram a lista de produções mais aclamadas e populares do ano — levando diversos troféus no Emmy do último domingo, 14, que consolidou as produções incômodas como a melhor tradução da TV atual.
Recém-lançada no Prime Video, a segunda temporada de Gen V, sem dúvida, não acalenta o coração. Derivado da voraz The Boys, e mais interligado que nunca à trama principal, o programa leva para as telas a violência gráfica de um mundo onde super-heróis usam a própria popularidade para disseminar ideias fascistas e conquistar cada vez mais poder — valendo-se, para isso, do apoio de governos autoritários e de magnatas influentes. Qualquer semelhança com os Estados Unidos de hoje não é mera coincidência, claro. Ainda assim, o roteirista Eric Kripke esclarece que, apesar das comparações inevitáveis com Donald Trump, o cruel Capitão Pátria é “um conglomerado de tiranos”. Muitos fãs brincam que está cada vez mais difícil para a história superar nas telas as bizarrices do noticiário diário.
Fora do mundo dos super-heróis, a realidade é ainda mais próxima dos incômodos da população: minissérie mais vista da história da Netflix, Adolescência pegou todos de surpresa ao retratar, por meio de um assassinato cometido por um jovem de 13 anos, os perigos da radicalização nas redes sociais e da cultura misógina que domina grupos virtuais frequentados por adolescentes. Protagonizada por Owen Cooper, que se tornou o mais jovem a conquistar um Emmy de melhor ator, a história escancara o principal motor do desconforto que desponta nas telas: a proximidade pungente com a realidade de um mundo cercado por incertezas políticas e sociais, e que exige vigilância redobrada daqueles que escolhem não se alienar. No caso da trama da Netflix, muitos pais se deram conta com o programa de que não têm ideia do que o filho faz trancado no quarto, e o perigo que isso pode representar.
Essa ligação direta entre ficção e realidade está presente também em outros sucessos atuais: exibida pela HBO, a série médica The Pitt acompanha o dia a dia do sistema de saúde americano, apresentando ao público as falhas e sobrecargas dos hospitais. Não à toa, o protagonista, Dr. Michael Robinavitch (Noah Wyle), como muitos médicos já fizeram em suas vidas, sucumbe à pressão e tem uma crise de pânico depois de lidar, durante toda a temporada, com o peso de comandar um centro de trauma e com as sequelas psicológicas deixadas pelas incontáveis mortes testemunhadas por ele durante a pandemia de covid-19. A completa falta de estabilidade psicológica é também um ingrediente recorrente em O Urso, que enfia uma faca no espectador a cada vez que o chef Carmy (Jeremy Allen White) sucumbe à pressão dos traumas nutridos por uma família desestabilizada, pela perda do irmão e pela rotina caótica e sem descanso imposta pelo trabalho na cozinha de um restaurante chique.
Embora pareça contraproducente assistir a algo que vai provocar agonia, a nova onda tem explicação lógica: ela sucede à fase das séries escapistas que dominaram a indústria depois da pandemia, com um olhar otimista da realidade. Na época do sofrimento causado pelo vírus, o público ansiava por tramas como Ted Lasso, que adicionaram ao dia a dia uma carga de otimismo e esperança. Agora, com o futuro em xeque diante da intensificação de guerras, crises políticas sem fim e pelo próprio estresse da vida em meio à algaravia das redes sociais, resta à audiência tentar entender como navegar nessa realidade por meio das séries — um papel, de resto, que o cinema fez tão bem ao longo de momentos de crise e desalento.
Muitas dessas séries traçam alertas valiosos: sucesso da Apple TV+, Ruptura chama atenção para questões que afligem os trabalhadores corporativos hoje, como a saúde mental. Mais que pessoas com o cérebro dividido em dois por uma grande corporação, a história se centra no dilema entre vida e trabalho imposto a boa parte da humanidade. Assim como as crises de pânico de Carmy em O Urso ou os discursos supremacistas do Capitão Pátria de The Boys, ver esse retrato nas telas pode não ser confortável, mas serve de lembrete para pontos que precisam de atenção na vida real — para combatê-los, preveni-los ou, simplesmente, identificar nossos próprios medos e desconfortos na tela. Encarar as verdades incômodas, afinal, é uma realidade inescapável da vida em qualquer tempo.
Publicado em VEJA de 19 de setembro de 2025, edição nº 2962
O que diz a última pesquisa sobre o potencial de Flávio na disputa presidencial
Mirassol x Flamengo no Brasileirão: onde assistir, horário e escalações
As reações de atrizes veteranas à fala de Regina Duarte na TV Globo
Como ficou o grid de largada da última corrida do ano da Fórmula 1
A escolha de Flávio Bolsonaro expõe a estratégia que ninguém queria admitir







