Por que a natureza nos castiga
A chuva castiga, dizem os telejornais. Com seus ecos religiosos, o verbo continua pairando sobre os desastres naturais deste verão, como ocorre há tantos verões. Não há nada errado na escolha da palavra, mas vale a pena examinar mais de perto esse velho clichê. Castigo pressupõe um crime. Moralmente, é a única ação que, infligindo […]
A chuva castiga, dizem os telejornais. Com seus ecos religiosos, o verbo continua pairando sobre os desastres naturais deste verão, como ocorre há tantos verões. Não há nada errado na escolha da palavra, mas vale a pena examinar mais de perto esse velho clichê.
Castigo pressupõe um crime. Moralmente, é a única ação que, infligindo o mal, figura entre as práticas do bem: autoridades – pais, mestres ou, eliminando intermediários, Deus – castigam para ensinar, aprimorar os cidadãos. Se não pretende o bem do castigado, o castigo tem outro nome, é apenas punição. Ou tortura.
Mas será que temporais, trombas-d’água, enchentes, inundações e deslizamentos buscam nos melhorar? Óbvio que não: isso seria atribuir uma intenção a fatos que pertencem à órbita indiferente do acaso. No entanto, é justamente aqui que a sensibilidade contemporânea nos diferencia das gerações que nos precederam.
Para nossos antepassados, pensar que a natureza nos castigava era um consolo próximo do pensamento mágico: ao atribuir fumaças de justiça, ainda que obscura, porque divina, a fenômenos aleatórios, evitava-se encarar de frente a fundamental indiferença dos elementos por nossa espécie presunçosa.
Isso mudou. De tão presunçosa, a humanidade deu um jeito de mexer nas engrenagens mais recônditas da natureza. O aquecimento global inaugurou um tempo em que o velho clichê soa renovado: o crime agora não é menos evidente que o castigo.