O português buraco e o japonês ‘buraku’ são parentes?
“Caro Sérgio Rodrigues, neste final de semana, fazendo uma visita ao museu de História Natural de NY, me deparei com uma pequena exposição sobre o Japão. Nesta exposição, os autores usavam a palavra em japonês ‘buraku’, que se refere a uma determinada vizinhança ou comunidade, e hoje em dia é utilizada para designar comunidades ‘especiais’ […]
“Caro Sérgio Rodrigues, neste final de semana, fazendo uma visita ao museu de História Natural de NY, me deparei com uma pequena exposição sobre o Japão. Nesta exposição, os autores usavam a palavra em japonês ‘buraku’, que se refere a uma determinada vizinhança ou comunidade, e hoje em dia é utilizada para designar comunidades ‘especiais’ no Japão, gerando uma certa discriminação.
Em português, utilizamos buraco quando nos referimos a lugares ruins ou mal localizados, existindo assim uma certa semelhança com o significado de ‘buraku’ em japonês. Fiz uma busca superficial na internet, mas não fui capaz de identificar a origem da palavra buraco. Gostaria de saber se existe alguma relação entre o português buraco e o japonês ‘buraku’.
Obrigado de antemão por sua resposta. E agradeço também pela ótima coluna na VEJA. É sempre muito educativa para mim.” (Carlos Borges)
A dúvida de Carlos Borges pode parecer meio despropositada, mas só para quem ignora que houve, de fato, um intenso comércio linguístico entre o português e o japonês. Tudo indica, porém, que as semelhanças sonoras e semânticas entre buraco e buraku não passem de coincidência, como veremos abaixo.
Primeiro, um pouco de história.
Entre meados do século XVI e meados do século XVII, navegadores e missionários portugueses introduziram no Japão não apenas palavras, mas também costumes, técnicas artísticas etc. “A influência portuguesa realizou-se directamente sobre os intelectuais japoneses nas relações pessoais destes com os missionários ou com os navegadores, e através do desenvolvimento científico ou artístico”, afirma Armando Martins Janeira em seu ensaio “A influência portuguesa na civilização japonesa”.
Segundo o mesmo autor, chegaram a ser 4 mil os vocábulos portugueses adotados no Japão nessa época. A maioria caiu em desuso há tempos, mas alguns, como karuta (“carta”), sobreviveram. Até hoje se discute o alcance de tal influência: o português “tempero” é uma das fontes possíveis de tempura, e há quem veja em arigato a sombra de “obrigado”, embora a maioria dos linguistas japoneses não concorde com isso. De toda forma, o comércio teve mão dupla: “biombo”, por exemplo, é uma palavra oriunda do país oriental que adotamos nessa época.
Seria buraku, termo que a princípio queria dizer apenas “vilarejo, povoado”, sem conotações negativas, uma dessas palavras introduzidas no Japão pelos viajantes portugueses? Ou mesmo, invertendo a mão, uma palavra japonesa levada de caravela para Portugal? Nem uma coisa nem outra, dizem os estudiosos.
Nosso termo buraco já existia antes das grandes navegações portuguesas. Tem origem controversa, embora provavelmente se ligue de alguma forma ao verbo latino forare, “furar”, e a datação das acepções informais e pejorativas de “lugar ermo” e “moradia pobre” é incerta. No entanto, sabe-se acima de qualquer dúvida que a palavra em si surgiu no século XIII. Quanto ao vocábulo buraku, os etimologistas japoneses o derivam sem titubear do chinês bùlào, “povoado”.
A discriminação a que se refere Borges é aquela sofrida pelo grupo chamado em japonês de burakumin, “gente do povoado, gente do gueto”, minoria social que teve origem no Japão feudal e que até hoje, representando entre 1,5% e 2% da população, tem problemas para se integrar à sociedade. Curiosamente, o que distingue do restante da população os indivíduos identificados como burakumin não é nenhum traço linguístico ou étnico, mas o peso de uma discriminação histórica de origem econômica, social e religiosa (pode-se ler mais sobre eles neste artigo em inglês).
Seja como for, parece que o português é inocente.
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