Metida, a butique nega, mas é da família do botequim
Quem vê a fina butique e o acanhado botequim – cada um, salvo releituras criativas ou acidentes de percurso, solidamente estabelecido em sua ponta do arco da sofisticação comercial – tem dificuldade de imaginar que essas palavras têm um ancestral comum: o grego apothéke, “armazém, depósito”. Apothéke passou ao latim como apotheca, “depósito de víveres, […]
Quem vê a fina butique e o acanhado botequim – cada um, salvo releituras criativas ou acidentes de percurso, solidamente estabelecido em sua ponta do arco da sofisticação comercial – tem dificuldade de imaginar que essas palavras têm um ancestral comum: o grego apothéke, “armazém, depósito”.
Apothéke passou ao latim como apotheca, “depósito de víveres, despensa”, e antes de virar sinônimo de farmácia em alemão e outras línguas europeias (foto), teve uma penca de descendentes ligados ao universo dos mantimentos e utilidades variadas. Entre nós, também carregam seu DNA a adega e a bodega. Mas vamos nos concentrar na dupla contrastante que motivou este post, a fim de investigar como, partindo do mesmo ponto e até passando pelos mesmos processos linguísticos (como a perda do a inicial, num fenômeno chamado deglutinação), duas palavras podem se tornar tão diferentes.
Butique é um termo que importamos já no século XX do francês boutique, palavra que o Trésor de la Langue Française informa ser de 1242. Seu sentido primitivo era apenas o de lojinha, pequeno estabelecimento em que um artesão vendia seu trabalho, ou mesmo a própria oficina. Boutique relacionava-se com a matriz grega por meio do provençal botiga ou botica. Curiosamente, antes de nos dar a butique moderna, a boutique francesa, em sua acepção antiga, gerou entre nós ainda no século XV o vocábulo botica, “armazém”, que hoje vai caindo em desuso.
A transformação de boutique em sinônimo de pequena loja especializada em artigos finos é uma construção da indústria francesa da moda ocorrida na primeira metade do século XX, segundo o Merriam-Webster etimológico.
A palavra botequim é mais antiga – foi em 1836 que se materializou pela primeira vez no dicionário Constâncio – e nos chegou por caminhos diversos. Trata-se de um diminutivo de botica, segundo Antenor Nascentes, ou uma adaptação do italiano botteghino (mais um descendente de apothéke), com possível influência de botica, segundo o Houaiss. Até então, a palavra preferida em nossa língua para designar “taverna pequena e imunda” – na definição de Ribeiro de Vasconcelos – era a velha bodega, datada de algum momento entre os séculos XII e XIII e descendente direta do latim apotheca.
Publicado em 20/3/2012.