‘Em direção à um mar agitado’?! Sobre a eterna crase
“Olá, tudo bem? Estou com a seguinte dúvida: vai crase nesse ‘em direção a’? ‘Estou sentado aqui, olhando em direção à um mar bem agitado.’ Desde já agradeço!” (Adriano Schmidt) Não, Adriano. Como já andei explicando aqui, a crase é simplesmente a contração da preposição a com o artigo definido feminino a/as (ou ainda com […]
“Olá, tudo bem? Estou com a seguinte dúvida: vai crase nesse ‘em direção a’? ‘Estou sentado aqui, olhando em direção à um mar bem agitado.’ Desde já agradeço!” (Adriano Schmidt)
Não, Adriano. Como já andei explicando aqui, a crase é simplesmente a contração da preposição a com o artigo definido feminino a/as (ou ainda com pronomes demonstrativos como “aquele” e “aquilo”).
Vejamos: será que existe artigo definido feminino em “um mar bem agitado”? Não, não existe. Além de ser indefinido, o artigo aí é masculino: um. A frase correta, portanto, é “Estou sentado aqui, olhando em direção a um mar bem agitado” – a preposição a está sozinha, a crase passa longe dela.
Agora vamos imaginar que, em vez de “um mar bem agitado”, você optasse por “a praia”. Bingo! Artigo definido feminino detectado, crase presente: “Estou sentado aqui, olhando em direção à praia”, ou seja, “em direção a + a praia”. (O mesmo ocorreria numa construção com pronome demonstrativo como “em direção àquela praia”.)
Procurar na construção que suscita dúvida o artigo definido feminino (ou ainda “aquele/aquilo”) é a chave para evitar todos os erros de crase, que são endêmicos no português brasileiro. De fato, é difícil encontrar uma placa de trânsito que não sapeque uma crase bárbara em “Obras à 200 metros”. Falantes cultos também derrapam com frequência em construções como “Homenagem à Guimarães Rosa”. Tornou-se viral o vídeo de uma recente bronca de Caetano Veloso sobre isso.
Tais erros são tão disseminados que o mestre Millôr Fernandes (foto) – que, sabendo escrever com absoluta correção, defendia filosoficamente a primazia do uso sobre a regra fria – abriu uma boa polêmica comigo certa vez, muitos anos atrás, argumentando que a única solução para o problema da incompatibilidade dos falantes brasileiros com a crase seria relaxar. Se existe “àquele”, então deveria existir “àlguém”, ele brincava, com a maior seriedade.
Minha posição filosófica é diferente. Costumo resumi-la assim: se fôssemos abolir tudo o que os brasileiros não sabem usar, o que seria das latas de lixo?
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