Amor antigo
“Duas mulheres bebendo cerveja”, de Édouard Manet O chope nem tinha chegado quando a viu. Estava a quatro mesas de distância, de costas para ele. Reconheceu-a pela nuca, pelos gestos, voz, tudo. Talvez não precisasse de nada daquilo, bastaria o campo magnético que sua presença criava. Foi quando se tocou: numa inversão perfeita da máxima […]
O chope nem tinha chegado quando a viu. Estava a quatro mesas de distância, de costas para ele. Reconheceu-a pela nuca, pelos gestos, voz, tudo. Talvez não precisasse de nada daquilo, bastaria o campo magnético que sua presença criava. Foi quando se tocou: numa inversão perfeita da máxima tão querida por escritores de auto-ajuda, o universo conspirava contra ele.
Não fazia sentido, claro. Pelas últimas notícias que haviam chegado anos atrás aos seus ouvidos, sem que as buscasse, ela estava morando na Europa, casada com um estrangeiro, a um seguro oceano de distância. Não era verossímil que presidisse aquela mesa ruidosa de jovens vadios, todo mundo com cara de artista ou parasita de artista, no meio de um dia útil no bar ao lado da sua casa. Chegou o chope e ele tratava de entorná-lo num único gole para ir embora correndo quando ela, virando-se por algum motivo, o viu. Viu, abriu um sorriso, acenou. Ele não teve a força moral necessária para deixar aquele abano pendurado sem resposta no ar do botequim, boiando na atmosfera engordurada. Adoraria ter feito isso, mas sem se dar conta reagiu ao gesto simpático com uma inclinação seca de cabeça. Talvez tenha passado por sorriso seu involuntário ranger de dentes.
– Como você está, meu querido?
De repente a mulher estava a seu lado, curvada sobre ele, interminável como antigamente. Seu olhar foi subindo devagar da saia vaporosa de aparência cara e barra irregular na altura dos joelhos, passou pela barriga apertada numa blusa de cetim indiano azul-pavão, pelas colinas que tensionavam de leve o tecido, ladeando o pingente de ametista aninhado num decote em V. Ali o olhar parou um instante para tomar fôlego, mas logo retomou a escalada, alcançou o pescoço e continuou a subir. Quando já parecia tarde demais conseguiu se desviar para um ponto vazio no espaço ao lado da cabeça da mulher, manobra radical executada na derradeira fração de segundo antes da colisão com os traços do rosto, que poderia ser fatal, mas não adiantou: ele sentiu uma colônia instantânea de gotinhas de suor tomar posse da área enrugada sobre sua boca.
Pronto, pensou, com o fatalismo enraizado e denso de seus oitenta e dois anos: vai começar tudo outra vez.