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Por Sérgio Rodrigues
Este blog tira dúvidas dos leitores sobre o português falado no Brasil. Atualizado de segunda a sexta, foge do ranço professoral e persegue o equilíbrio entre o tradicional e o novo.
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A hipótese Brás Cubas

‘Beethoven em seu leito de morte’, de Josef Danhauser Em seu leito de hospital, o velho escritor ergue a caneta Bic com suas últimas forças. Sabe que lhe resta pouco tempo, talvez horas, e se aflige mortalmente. Então é isso? Tanto para dizer, tanta coisa prometida, tão pífia realização? Passa mais de meia hora de […]

Por Sérgio Rodrigues
Atualizado em 31 jul 2020, 08h52 - Publicado em 13 Maio 2012, 10h00

‘Beethoven em seu leito de morte’, de Josef Danhauser

Em seu leito de hospital, o velho escritor ergue a caneta Bic com suas últimas forças. Sabe que lhe resta pouco tempo, talvez horas, e se aflige mortalmente. Então é isso? Tanto para dizer, tanta coisa prometida, tão pífia realização? Passa mais de meia hora de olhos pregados na parede, cismando bestamente na possibilidade de, como Brás Cubas, terminar sua obra… do outro lado.

Escreve:

Brás abre o primeiro capítulo de suas memórias, chamado “Óbito do autor”, hesitando entre começar pelo princípio ou pelo fim, isto é, pelo nascimento ou pela morte. É claro que vemos aí a “pena da galhofa” que ele acabara de anunciar no prólogo – e se nada disso faz sentido para você, membro de uma geração que não lê Machado, azar o seu – mas nem por isso a questão do ponto de partida é menos crucial. É difícil levar qualquer empreitada a bom termo quando não se sabe o motivo de ter começado, claro. No entanto, não é esta uma boa definição da própria vida?

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Seria? O escritor olha para a janela, com sua persiana eternamente fechada. Tenta se lembrar do êxtase provocado por uma certa manhã de sua infância, cheia de sol, pescaria e alarido. Sobre ela só consegue extrair da memória descrições posteriores, adultas, palavras. Reflexos de reflexos.

Meu problema, pensando bem, é mais grave que o de Brás. Se a vida do filhinho de papai nascido no Primeiro Reinado parecia a ele mesmo tão desprovida de sentido que o modo de ordená-la num livro passava a ser uma gratuidade, simples opção de estilo, o que dizer da vida de um moribundo que tentou filtrar tudo em palavras, só para descobrir, no fim, que elas o abandonaram feito filhos ingratos?

Sim: depois da morte de Ione, sua mulher, os três filhos do escritor sumiram no mundo. Nenhum deles foi visitá-lo no hospital, mas não é nisso que ele quer pensar agora.

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O problema com a hipótese Brás Cubas, que seria a esta altura o único consolo, não é só o meu sólido ceticismo sobre a perenidade do espírito e toda essa lengalenga. No tempo longínquo em que eu ainda acompanhava Ione aos cultos kardecistas, de pura fidelidade conjugal, houve momentos em que meu agnosticismo chegou a vacilar diante da evidente honestidade daquelas pessoas, do seu fervor, e também de alguns fenômenos esquisitos para os quais eu não tinha explicação. Mas só balancei até o dia em que um dos frequentadores, de olho numa conversão e decerto sabendo-me um “homem de letras”, me emprestou um livro chamado “Parnaso d’além-túmulo”. Trata-se de uma coletânea de poetas mortos, um volume inteiro de versos psicografados. Li todinho mas, confesso, por puro espírito de porco: a partir do segundo poema eu tinha que me trancar no banheiro para rolar de rir sem que Ione percebesse. Lá estavam diversos grandes, Álvares de Azevedo, Bilac, Bandeira. Ou o editor dizia que estavam. Ocorre que os poemas eram toscos demais, bisonhos demais, obras de ginasianos de província. Minha conclusão foi que, caso aquilo não fosse uma grossa picaretagem, a pior coisa que podia suceder ao estilo de um escritor era a morte.

O escritor sorri por dentro, mas seu rosto permanece imóvel. Está cansado demais. A Bic cai de sua mão sobre o lençol branco em que se lê, em tinta azul desbotada, o nome do hospital.

E acabou.

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