Vandalizando a lógica
Fernando Barros e Silva, editor de Brasil da Folha, escreve hoje um artigo intitulado Weekend à paulistana. Parte é dedicada às suas agruras para tentar sair de São Paulo no feriadão. Nada a dizer. Ou quase nada. Num dado momento, reclamando da incivilidade coletiva, levando Jean-Paul Sartre no banco de passageiro, ele escreve (em vermelho): […]
“Sigo pela Bandeirantes no limite da velocidade, desafiando aqui e ali a legalidade. Perco a conta dos carros que me fustigam apressados, piscando furiosamente os faróis para exigir passagem. A cena, repetida exaustivamente, sugere uma manada desgovernada, à revelia de qualquer lei, atropelando o que está à sua frente. Sigo a manada. O inferno são os outros. Quando a irracionalidade é coletiva, tendemos a buscar soluções individuais, ‘saídas espertas’ que só fazem realimentar o círculo da insensatez.”
Não sei se entendi direito, mas parece que os seus parceiros — ou adversários — de estrada transgridem a lei. E Barros e Silva também. A diferença é que ele dá a entender que faz com dor na consciência o que acha que os outros fazem por má consciência. Poderia abandonar Sartre (“o inferno são os outros”) e aderir à fala do menino mimado quando flagrado fazendo arte com os amiguinhos: “A culpa é deles, professora!” É, taí uma coisa demasiadamente humana: considerar que maus são os motivos alheios; os nossos, claro, são sempre muito nobres. Por banal, já escrevi até demais a respeito. Vamos ao trecho que, de fato, me interessa:
O fim de semana foi marcado por dois episódios extremos de delinqüência. No Rio, um homem teve a cabeça destruída por uma barra de ferro. Havia reclamado do motorista sobre a faixa de pedestres. Está em coma. Em São Paulo, um jovem de 18 anos morreu com um tiro na nuca -desfecho trágico de uma discussão trivial entre motoristas.
Será que o valente assassino tinha porte legal de arma? A questão talvez pareça deslocada. Mas algo me diz que o sanatório geral do trânsito, a boçalidade do crime e o resultado igualmente brutal daquele plebiscito que disse sim às armas deveriam ser pensados juntos.
Os vândalos da mídia que apoiaram o direito de cada um à sua pistola são os mesmos que hoje fazem a apologia das “saídas espertas” e praticam o salve-se quem puder.
Huuummm… Acho que se refere ao referendo — e não “plebiscito” (há diferenças) — que propunha a PROIBIÇÃO DA VENDA LEGAL DE ARMAS, e não “o direito de cada um à sua pistola”. Não quero fazer Barros e Silva mudar de idéia. Nunca quero fazer ninguém mudar de idéia. Eu defendi o “não”, escrevi a respeito e participei de debates públicos. O articulista comete alguns pecadilhos na estrada e acredita que a culpa é dos outros. Segundo leio acima, ele deve achar que eu, por exemplo, sou mais culpado pela violência do que ele, que deve ter votado “sim”. Talvez eu pudesse provar que não é assim e que ele ganha de mim em vandalismo. Mas isso seria inútil. Se puder ajudar a reconciliá-lo com a lógica, já está bom. E isso se pode fazer com inteligência, a despeito, sei lá, de ideologias ou gostos pessoais, por exemplo.
Até a realização do referendo, proposto pelo Estatuto do Desarmamento, em outubro de 2005, haviam sido vendidas no país SETE armas legais. O problema era, é e continuará a ser A VENDA ILEGAL DE ARMAS. Para que o resultado daquele referendo pudesse ter ao menos uma correlação com a morte do jovem de que ele trata, o assassino teria de ter comprado a arma legalmente — e depois daquela votação. Mas notem: seria uma correlação longínqua, jamais uma relação de causa e efeito.
Não sei se o autor atentou para o que ele próprio escreveu: “No Rio, um homem teve a cabeça destruída por uma barra de ferro.” Seguindo o raciocínio de Barros e Silva, é preciso fazer um referendo para proibir também as barras de ferro. Se ele assistir ao Poderoso Chefão 3, de Francis Ford Coppola, será tentado a proibir a fabricação de óculos com haste, usada ali para cortar a carótida de um inimigo de Michael Corleone.
Estudos quantitativos provam de sobejo que o que mata é a impunidade. O número de homicídios caiu fantasticamente em São Paulo, por exemplo, porque é a Polícia do país que mais prende. Menos bandidos na rua, menos mortes. É simples assim no mundo inteiro. A maioria da população votou “não” naquele referendo porque sabia que as forças de segurança do estado não tinham instrumentos para tirar de circulação as armas ilegais. O referendo queria proibir a arma a quem está disposto a comprá-la legalmente para torná-la monopólico das forças do estado e… dos bandidos. Não é o porte de arma que faz o assassino, mas o caráter: o instrumento pode ser o revólver, a barra de ferro e ou a haste dos óculos.
Barros e Silva tem o direito de chamar de “vândalo” quem ele bem entender. Eu só provei — em vez de achar — que ele vandalizou a lógica.
PS: Não sei dirigir. Em companhia de Dona Reinalda, jamais transgredimos as regras, pouco importa a demanda coletiva. Jamais fizemos nem mesmo a famosa fila dupla para pegar filhas na escola “já que todos fazem”. Todos fazem, mas nós não fazemos. Ninguém me obriga a transgredir a lei se eu não quiser. O mal, potencialmente ao menos, está dentro de cada um de nós. Somos o nosso próprio inferno — ou a nossa salvação.